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Mulheres são assunto para novas intromissões

05.06.2007, às 09H40.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H25

Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito nem qualidade
Têm medo apenas...

Mulheres de Atenas, Chico Buarque. 

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A Rainha Gorgo em 300

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Abismo do Medo

[As síndicas da lei]

Quanto o passado histórico nos influencia? 300 trouxe de volta o problema da violência x alta cultura. Alguns historiadores acreditam que o sacrifício dos espartanos, de sociedade francamente tirana, tenha sido responsável pela eclosão - e manutenção até os dias de hoje - da Grécia do século 5 a.C. como o mais perfeito modelo da junção entre cultura, democracia e ideal de sociedade. Será que realmente algum lugar vive esta atmosfera grega de 2500 anos atrás? Certamente a Grécia, não! Curiosamente, em 300, quem lembra os valores morais da sociedade é a esposa de Leônidas, a rainha Gorgo. Mandona, Gorgo (a do filme, não a da história, pelo que consta) coloca ordem em Esparta. Sozinha. No filme dos machões que se veneram, a ordem é mantida por uma mulher... Em Às favas com os escrúpulos (Teatro Raul Cortez, São Paulo), que acaba de estrear, Bibi Ferreira dá uma folga aos musicais com a comédia de Juca de Oliveira. Ele faz seu marido, um senador corrupto, amante da secretária -loura burra- feita por Adriane Galisteu. Missão da velha (mas sempre juvenil) dama: em clima caótico, uma dona de casa, aparentemente tola e recatada pode tomar as rédeas da lei. (Veja a entrevista de Bibi, sempre fantástica, ao Jô Soares, que também dirigiu a peça aqui)

[Mulheres de Tróia] 

A primeira parte da ópera de Hector Berlioz, Os troianos - baseada na Eneida de Virgílio - termina com um suicídio em massa das mulheres que, logo após se esfaquearem gritam: Itália! É a esperança de uma nova terra formada longe das batalhas e da violência masculina que destruíram os ideais da antiga Grécia. Por ênfase de Berlioz, a Itália é saudada por mulheres fortes que estão saturadas de leis em que não servem para mais nada. A Itália é esperança de uma terra nova, próxima e fértil. E não é que a profecia se realizou? Donos de uma das maiores economias do planeta, os italianos se divertem com a eterna dança quase anárquica dos políticos, que renunciam numa semana e voltam ao poder na outra. No trânsito, toda zorra é pouca. Motoristas estacionam em qualquer lugar, em fila dupla, tripla, sobre a calçada! Mesmo com guinchos ou pesadas multas nada se modifica. Quem consegue negar o charme desta terna desordem? Economia informal, gritarias mais amenas no norte do país e profusas ao sul dão o tom sob sol ou chuva. As jovens são lindas, os rapazes cada vez mais delicados. Andam de braços dados e se cumprimentam com beijos. A Itália é dramática, exagerada, elegante, culta e... definitivamente feminina.

[A boca da vagina]

Com conhecimento acadêmico Eve Ensler escutou mulheres que quisessem falar sobre suas vaginas. As entrevistas resultaram em Os monólogos da vagina, peça escrita e representada por ela pelos Estados Unidos durante cinco anos, além de várias montagens pelo planeta (há vários clipes delas também no You tube). Agora, boa parte do espetáculo sai em DVD (HBO/Warner), numa espécie de documentário. Delicioso. Esqueça a bobajada hightech montada no Brasil - com muito sucesso - por Miguel Fallabela, que transformou a sutil texto de Ensler em um Sai de baixo ainda mais avacalhado. Os monólogos puxam para o engraçado, mas não para a chanchada. Nem poderiam. Sobra pouco para o pênis, no texto sempre reduzido à pinto (dick). Aquele que bem usado proporcionaria prazer. Só há um quadro em que uma mulher que não apostava nada em um rapaz desengonçado, magro, sem jeito, descobre-o com inesperada aptidão para satisfazê-la. De resto, as vaginas falantes falam mal de homens brutos, inseguros, estupradores, estúpidos e falam bem de vibradores, dedos, mãos... As atrizes reclamam que não há papéis bons. Que asneira. É só lembrar dos filmes mais badalados do ano passado: Volver, Notas sobre um escândalo, Maria Antonieta, A rainha, O labirinto do fauno, O diabo veste Prada. Algum lugar para homens?

[O último homem] 

O diretor Christopher Nolan se transformou em um dos últimos a dar voz às aflições masculinas no cinema. Clint Eastwood fazendo escola... O grande truque, que sai agora em DVD (pela Warner, a única distribuidora que não demora anos para lançar, as outras o fazem quando o filme já morreu nos cinemas e nas memórias). Bem longe da xaropada que reduziu a maioria dos homens retratados no cinema a debilóides ou eternos adolescentes, o recado do filme é explícito: Christian Bale e Hugh Jackman, não por acaso, Batman e Wolverine respectivamente, se esfalfam para provar quem tem o pau maior. Velho problema dos homens (em vestiários), levado a sério pelo olhar de Nolan. Aliás, o diretor já provara ser o grande defensor das questões masculinas em todos os seus filmes anteriores: a perda de memória em um homem traído em Amnésia, a culpa em Insônia e o pavor da castração em Batman begins. Nem sobra espaço para a diva do momento, Scarlet Johansson, que como sempre só faz caras, beiços e some da trama sem fazer falta.

[O corpo não tem sexo] 

Psicologia, pesquisa e clínica acaba de sair pela Editora Annablume. Nesta coleção de artigos, o psicanalista Francisco Rodrigues Alves em "Que corpo é esse? O corpo no discurso" analisa as diferenças entre fisiculturistas e médicos quando avaliam seu entendimento sobre o corpo. Atletas falam muito, médicos são lacônicos com visão bastante diversa. Nem poderia ser diferente. Para quem malha, o corpo é mais integrado. Para o médico - foram excluídos da pesquisa aqueles que trabalham com estética - o corpo é despedaçado, tratado como órgãos. O problema é que talvez as coisas estejam mudando. Pelo menos para quem freqüenta as academias. Quero "trabalhar" mais minha bunda, meus bíceps, meu peito. O corpo estilhaçado não é mais exclusividade do médico que se dedica ao fígado, ao coração, ao ossinho quebrado em uma das mãos. A busca pelo ideal de beleza não tem limites. Hoje há poucas diferenças entre homens e mulheres no palco da depilação, cremes, xampus... Mais do que o médico que trabalha com o ideal de saúde, o instrutor de academia tem se incumbido da conexão entre os corpos que vagam entre pesos, bicicletas e piscinas. É ele quem acompanha diariamente e tenta montar o quebra-cabeça que une genética à vontade de mudar. Em Sociologia do corpo (lançado recentemente pela Ed. Vozes) David Le Breton diz que o problema da medicina é forjar um corpo ideal para o homem. Quem quiser saber como pensa o médico em eterna crise entre o conceito de saúde e o imaginário estético é só assistir a qualquer episódio da série Nip/Tuck.

[Violência verbal] 

Tinha tudo para ser brega. Assim como quase todas as versões de musicais americanos feitas no Brasil recentemente. Não é! My fair lady, adaptação da peça Pigmalião de Bernard Shaw, é uma montagem perfeita para os nossos tempos. No teatro Alfa, em São Paulo - e com diálogos que muito lembram as sitcoms americanas: rápidos e afiadíssimos - o musical sublinha como vivemos em tempos de verbo rude, mas não necessariamente sem afeto. Amanda Acosta, ex-cantora mirim, faz Eliza Doolittle, uma vendedora de flores pobretona, grossa, que grunhe ao invés de falar. Francarlo Reis faz seu pai, numa transposição perfeita de um inglês rude para um brasileiro bronco e bonachão. O professor Henry Higgins é feito pelo experiente Daniel Boaventura, que não sai dos palcos musicais. Higgins nunca abre mão de uma rudeza masculina, embora se apóie numa base francamente feminina, a do conhecimento da língua. Ele é grosso, misógino e ao mesmo tempo frágil. Eliza é atrevida, nada feminina e ao mesmo tempo dócil. Masculino e feminino se encontram, se estranham, invertem os papéis e se resolvem em um dos duelos de sensualidade mais impressionantes da história da cultura. Cláudio Botelho, uma espécie de tradutor oficial dos musicais montados no Brasil acertou na versão, que se mostrou definitivamente adaptável para o Brasil, mesmo mantendo a atmosfera British. Jorge Takla, o diretor, conseguiu dar um ritmo inquietante para o musical que não pretende ser uma simples diversão. Com a palavra, Paulo Autran e Bibi Ferreira que fizeram a primeira montagem no Brasil... há 45 anos.

[Brandura verbal] 

Mônica Salmaso sempre foi fã e estudiosa de Chico Buarque. Gravidíssima no final de 2006, gravou seu tributo ao ídolo e pariu um dos mais belos discos da música brasileira, ex-MPB: Noites de gala, samba de rua (pela magnífica gravadora Biscoito Fino). Chico adorou e convidou a tiete para sua apresentação popular no Circo Voador, Rio de Janeiro. De onde saiu o título? "Suas noites são de gala , nosso samba ainda é na rua. Hoje o samba saiu lá lalaiá..." (de "Quem te viu, quem te vê"). Gênio. Danem-se as premonições. Já decretaram o fim da música clássica, do jazz, da ópera, da bossa nova... É claro que todas estas fórmulas musicais tiveram seu ápice como apelo popular ou sucesso, mas até hoje se reinventam ao infinito em mãos, gargantas e registros sublimes como este. Com base no grupo Pau Brasil, liderado por Nelson Ayres, Salmaso empresta sua voz triste para o tom mais perfeito de "Construção", que, sem o arranjo fantástico de Rogério Duprat para Chico em 1971, expõe sua cara mais dura, assim como Elis Regina fez com "Saudosa maloca". "Morena dos olhos d'água" com apenas o piano de Ayres e o baixo de Rodolfo Stroeter já está aprovada pelos deuses da eterna MPB. Todos estarão durante o mês de junho no Teatro Fecap em São Paulo.

[Fêmea nervosa] 

Nos passos de Hannah Arendt. Esta é a biografia do ano, escrita por Laure Adler (acaba de sair pela Ed. Record). Rabugenta, controversa, prepotente foram alguns dos termos atribuídos a esta judia alemã que passou grande parte da sua vida tentando decidir entre o judaísmo e a Alemanha. Enquanto judia, Hannah odiava a Alemanha. Quando alemã, tinha evidente irritação com judeus, por terem "se entregado" aos nazistas tão facilmente. Esta hipótese - repetida exaustivamente desde que assistiu ao julgamento do carrasco nazista Adolph Eichmann, em Jerusalém, 1961 - trouxe bastante transtorno à pensadora que não foi poupada nem por amigos mais íntimos. Como ousava em acusar os judeus de conivência com seu sombrio destino enquanto estava segura nos Estados Unidos? Hannah morreu sem voltar atrás, embora reconhecesse a anestesia que a violência pode provocar no ser humano. Mesmo com um sem número de exames de consciência não conseguia entender como um povo em maioria se rendeu à matança organizada dos nazistas. Denunciou o julgamento de Eichmann como uma palhaçada da mídia, excessivamente longo, que tentava transformá-lo em monstro. Para ela, o nazista não passava de um humano normal, cumprindo ordens baseadas numa mentira inventada por um sistema que pode voltar a funcionar a qualquer momento. Hannah previu que a violência depois da Segunda Guerra Mundial ficaria pulverizada, com o mesmo poder de destruição. Quem duvida?

[A mulher morta] 

Abismo do medo (título como sempre ridículo no Brasil, para o original The descent), passou sem barulho pelos cinemas brasileiros, mas a crítica americana do ano passado venerou especialmente pelo aspecto inovador do surradíssimo gênero filme-de-terror. Agora sai em DVD pela Califórnia Vídeo. Após um ano de terrível acidente em que perde o marido e a filha, Sarah, a protagonista, se junta a cinco mulheres adeptas de esportes radicais. Para superar o trauma que a afetou, as amigas resolvem lhe dar uma forcinha para explorar uma caverna perdida numa floresta americana. O filme tem de tudo: as surradas passagens de alpinismo, claustrofobia para ninguém reclamar e especialmente a prova da amizade entre mulheres. Qual é o limite para a lealdade em meio à sobrevivência provocada pelo passado, pelos fantasmas do presente e os monstrinhos que habitam a caverna? O filme é bem pessimista quanto ao feminino. Em tempos de Xena, vence a mais forte, a mais mentirosa, a mais traidora. Resumo da ópera: Abismo do medo é uma espécie de Sex and the city hardcore sem espaço para lugares badalados. Aqui o feminino está morto. É retrato mais cruel da relação entre mulheres.

[A feminicidade ] 

Felicidade é uma busca feminina? A capa brasileira é brega. Mostra uma cinqüentona sorrindo, o que sugere um livro com palavras consoladoras para o medo de envelhecer. Nada disso. Felicidade: uma história (Ed. Globo), de Darrin M. McMahon é surpreendente pela análise deste substantivo tão incerto, banalizado e ao mesmo tempo de difícil sentido. A edição brasileira apela para o chamariz do fêmeo banal, como se a felicidade fosse uma busca exclusiva da mulher. Ou são as mulheres que mais compram os infames livros de auto-ajuda? Três mil anos de história, cultura e filosofia são analisados pela busca da felicidade: da concepção grega de acaso divino, ou do prazer x virtude, passando pelo conceito cristão de impossibilidade da felicidade na Terra, até o direito à felicidade, como está na constituição dos Estados Unidos. Se Hannah Arendt viveu para definir, gritar e denunciar o que acreditava ser o mal, a raiz da destruição do ser humano pelo próprio ser humano, Felicidade trata de forma otimista a possibilidade de encontrarmos e buscarmos prazer em nossa existência. Terrena.  

[Um presságio maduro]  

O continente negro lembra as peças de Fauzi Arap, anos 70, em que os protagonistas falavam, falavam, falavam e hipnotizavam a platéia com uma verdade incisiva, que na maioria das vezes denunciava de forma velada a liberdade balizada pela ditadura. Agora não há mais ditadura. Mas se naquela época a desculpa era a tirania, qual seria agora o motivo para a impossibilidade de comunicação? Só a da burrice, na qual insistimos em perpetuar no poder. Continente negro está no Teatro da FAAP, São Paulo e não é para simples passatempo. Escrita pelo psiquiatra chileno Antônio de La Parra , o texto celebra o retorno do teatro que incomoda, mas não quer apenas chocar. Débora Falabella (que não consegue ser menos do que doce), Ângelo Antônio e Yara de Novaes fazem vários personagens que não escondem as dificuldades para se relacionarem, falam a verdade todo o tempo e esta não impede a absoluta constatação que algumas relações são impossíveis. Os personagens a todo o momento se referem a uma possível viagem à África, o continente negro, como um sonho, uma saída para seu desespero, o vazio. Como na graphic novel Avenida Dropsie, de Will Eisner, os cidadãos são engolidos pelo anonimato urbano que leva à nulidade das relações, da esperança de futuro. O continente negro é um aviso para o que se deve fazer. Se quiser ficar sozinho.

[O político conveniente] 

Ninguém pode acusar Al Gore de oportunista. Há anos, muito antes da atual preocupação com o aquecimento global, ele chama atenção para a necessidade de tomarmos providências e evitarmos uma catástrofe anunciada. O problema de Uma verdade inconveniente (lançado em DVD pela Paramount) é que se trata de uma descarada propaganda política. A quem interessa saber que o papai de Al Gore era preocupado com a saúde mundial e destruiu suas plantações de tabaco ao ter a filha fumante morta por câncer de pulmão? Aos seus eleitores, é claro. O ex-futuro presidente dos Estados Unidos - levou, mas não ganhou as eleições pela roubalheira na Flórida que elegeu George W. Bush - poderia pelo menos ter citado sua fonte principal, o estupendo Colapso (Ed. Record), de Jared Diamond, lançado no ano passado, a cartilha para conhecermos como podemos nos extinguir. Para quem lê revistas semanais ou dá uma olhada nos jornais, as informações do filme vencedor do Oscar de melhor documentário não traz novidades. Para quem só fica nas novelas ou nas propagandas de cerveja...

Se a Terra é mulher, está numa baita TPM.
Intrometido anônimo

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