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O Ultimato Bourne é analisado na nova edição da coluna

17.09.2007, às 22H30.
Atualizada em 11.03.2017, ÀS 02H06

[O olho da memória] 

Em O Ultimato Bourne o personagem feito por Matt Damon mais uma vez foge, corre, pula, além de distribuir pontapés e tabefes em quem surgir pela frente. Apesar do ritmo vertiginoso - a típica câmera na mão do diretor Paul Greengrass (Vôo United 93) é levada às últimas conseqüências - a essência do filme está na busca de um passado que surge em forma de flashes para o herói Jason Bourne. Ele não sabe nada sobre si, apenas age como uma águia à espreita de qualquer movimento para se defender ou atacar. O segredo do filme é nos colocarem colados a Bourne, o que não facilita a visão do espectador. As cenas são alucinantes. Como a maior parte das seqüências é de perseguição, às vezes mal reconhecemos quem bate ou quem apanha. Prevalece a busca da interpretação pelo olhar. Bourne age quase por instinto. Procura câmeras escondidas, suspeitos ameaçadores e, mais do que tudo, o fio condutor de seu passado para o presente. A neurociência nos ensina que o cérebro é um complicador. Aceita todos os estímulos, para depois escolher nomear e qualificar. O que assistimos em O Ultimato Bourne é o que Jason faz na trama: aquela enormidade de estímulos nos força a classificar imediatamente as imagens para tentar entender o que acontece. Assim como o personagem, buscamos sentido para aquela correria. É a mais pura identificação entre espectador e cinema.

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[A luz da memória]

Uma Vida Iluminada (DVD - Warner), filme pouco visto (DVD da Warner) e irrepreensível adaptação do livro de Jonathan Safran Fouer (Tudo se ilumina /Editora Rocco), tem como hipótese que a memória nos ilumina em determinados momentos, muitas vezes súbitos, em que o passado pode vir com uma carga devastadora de afeto. Esta luz provocadora obriga a reflexão. No caso do filme, reminiscências atualizadas trazem o arrependimento por decisões passadas. O Holocausto é revisto pelos olhos de um velho rabugento e anti-semita que vive numa Ucrânia despedaçada pela queda da União Soviética. Dono de uma falida empresa de turismo que guia judeus em busca de familiares ou objetos que foram tragados pela Segunda Guerra Mundial e depois pelo comunismo, ele imagina estar cego, embora seja o motorista de um carro que se desmancha pelas ruas esburacadas de Odessa. É um típico road-movie que agrega o velho engraçado, seu neto deslumbrado pelo hip-hop, um cachorro vira-lata e o turista americano, um jovem com mania de colecionar tudo o que considera significativo para sua vida. Esta estranha galera alterna entre a invariável dificuldade da língua, até os percalços mais óbvios da jornada, sempre seguindo os passos das memórias que se encontram nesta trama curiosa e simbólica. Se Bourne pena para ligar os pontos que levam à linha de sua existência, em Uma Vida Iluminada o passado intruso se apresenta silenciosamente, obrigando a mudança e uma nova qualidade dos afetos.

[A memória da ignorância]

O Vulto das Torres, de Lawrence Wright, é o balanço das trevas em que o mundo ocidental foi jogado após 11 de setembro de 2001. Wright mostra como a vontade de simplesmente destruir o ocidente começou ainda nos anos 40, quando o egípcio Sayyid Qutb exilou-se voluntariamente em Nova York , fugindo da perseguição política e religiosa em seu país. Intelectual e praticante do islamismo, Sayyid deparou-se com uma cultura extremamente simpática ao exercício religioso de qualquer espécie, inclusive a sua, mas ficou chocado com a "liberdade" sexual dos americanos. O egípcio dizia que as mulheres norte-americanas eram insinuantes e oferecidas. Wright certamente analisa por uma vertente psicanalítica a origem do ódio aos americanos e a constatação, por parte de Qutb que o ocidente era podre. De volta ao Egito foi trancafiado e morto pelo regime ditatorial de Nasser. Virou mártir. Hoje Sayyid Qutb é a imagem inspiradora para a Al-Qaeda de Osama bin Laden. Mais uma prova que a barbárie se instalou em nossas vidas. Violência é exercício do poder. Barbárie é exercício do extermínio. No Brasil não temos terrorismo, mas alguém duvida que nossa violência urbana tenha características da mais pura e simples vontade de destruir? Os etólogos têm nos mostrado que macacos podem ser mais afetivos e éticos que os humanos. Raramente os animais se matam se não for por comida ou aspectos biológicos geneticamente determinados. O homem mata pelo prazer de matar. O problema da continuidade da existência humana está na preservação de uma memória que lembra dos erros para não serem repetidos. É o que mostra a mobilização atual pela correção ecológica, salvo intenções oportunistas de políticos e ONGs histéricas. Em O vulto das torres, Wright não deixa dúvidas: uma das podridões humanas está no prazer em destruir. Mesmo com a máscara da religião ou da política.

[A memória da violência]  

Apocalypto (DVD - Fox) passou sem grande barulho pelos cinemas. Talvez a crítica tenha desprezado por ser um filme de Mel Gibson, sempre politicamente incorreto quando é pego borracho pela polícia. O filme é estonteante. Numa já tradição do realizador, é todo falado em um dialeto maia, que dá ares de veracidade a uma guerra entre tribos da América pré-colombiana. O protagonista lembra o Ronaldinho Gaúcho e passa todo o filme fugindo dos índios conquistadores que se interessam apenas em aproveitar os prisioneiros para sacrifícios religiosos. Novamente é a religião que dá sustento ao extermínio... A carreira de Mel Gibson sempre foi pautada pelos filmes violentos. Não é diferente com Apocalypto. E mais uma vez a violência mostrada pelas belas imagens é convincente pela trama. É impossível negar: o cinema nasceu para mostrar violência. Os primeiros filmes com locomotivas se aproximando ou tiroteios assustavam as platéias. É o que Apocalyto consegue. A perseguição aflitiva lembra muito o estilo de O ultimato Bourne, mas num cenário deslumbrante da floresta, com cores só vistas naqueles filmes megaproduções dos anos cinqüenta.

[A memória atualizada ou o passado no presente]  

Aos poucos percebemos que algumas séries de televisão, especialmente as norte-americanas, se transformam em um tratado social e antropológico dos tempos atuais. Mesmo com algum exagero. Quando Nip/Tuck parecia ter esgotado o arquivo secreto das perversões, Weeds (que estréia terceira temporada em breve no GNT e só foi lançado em DVD nos Estados Unidos) mostra que ainda há muito o que vasculhar nos cantos obscuros da alma humana. Weed quer dizer erva, e é gíria para maconha. É o que vende aos vizinhos a heroína da série, Nancy Botwin, feita por Mary-Louise Parker, sempre premiada com Globo de Ouro e Emmy. Desperate Housewives se apresentou como o lado podre dos subúrbios americanos. Weeds vai mais longe, porque destrói a idéia de que os famosos condomínios são refúgios para as abastadas famílias que querem fugir da agitação urbana. Nada disso. Justin Kirk (que fazia um "anjo" à força em Angels in America ) e Elizabeth Perkins (a amiga com câncer que repentinamente descobre as verdades da vida) disputam as atenções a cada cena.

A maioria da crítica anuncia o apocalipse. Os admiradores choram. Com razão. Lá se vão dois dos maiores cineastas do ocidente: Bergman e Antonioni. Seus filmes estão acima de qualquer desconfiança. No mínimo incomodam, o que não é pouco em tempos de pasmaceira. Pode-se reclamar do tempo lento, da temática pesada, mas é impossível a neutralidade perante a qualquer obra destes dois mestres. Pois é. Quem pode negar que haja muito de Woody Allen em Weeds? Ou de Antonioni e Bergman em Six feet under...

[O limbo da memória]

A teoria de Letra e música (DVD - Warner) é: o amor vem ao compartilharmos o mesmo projeto e faz com que ele dê certo. Na mesma atmosfera do romance e do filme nele baseado, Um grande garoto. Alíás, aqui, Hugh Grant faz o mesmo papel. Numa mistura entre George Michael e Sidney Magal, Grant foi um sucesso no grupo Pop nos anos oitenta e agora vive do passado, com showzinhos em hotéis e parques. Ao ser convocado pelo ídolo teen do momento, figura que reúne Cristina Aguilera, Shakira e Britney Spears em uma só hilária personagem. Através dela, o decadente compositor e cantor vê nova chance de voltar ao sucesso. Tem de escrever rapidamente uma música para a exigente cantora, mas não consegue sozinho. Aí aparece a mais atrapalhada ainda Drew Barrymore, em mais um papel de fofa (que sempre faz bem) escritora frustrada. Grant entra com a música e Barrymore com a letra. Grant entra com o passado e Barrymore com a possibilidade de revê-lo. A memória só serve para rechear sua existência dando uma qualidade para suas vivências. Todas as pesquisas sobre Alzheimer, até o momento comprovam que a memória não é uma função isolada, mas sim integrada. Letra e música é um pequeno exemplo que viver no passado pode ser uma escolha, certamente acomodada, mas que pode ser muito divertido arriscar a mudança, sem necessariamente cortar suas raízes.

[Uma geração desmemoriada]

Joe Z. Tsien, cientista chinês radicado em Boston afirma que buscamos imagens de grande impacto para nos acostumarmos e nos fazermos mais fortes. Sidarta Ribeiro, nosso mais famoso neurocientista, confirmou que a memória é ratificada pelo sono. Segundo os dois experientes e... literalmente ratos de laboratório, a atual geração de jovens poderá ser desmemoriada. Alguém ainda dorme? Alpha dog (DVD Imagem Filmes) pode ser um aviso sobre esta geração com cimento no lugar do cérebro. Imagens impactantes que marcam. Jovens de classe média com pais insípidos (Bruce Willis e Sharon Stone estão ótimos como dois deles) se drogam, transam, gostam e desgostam com uma velocidade e superficialidade espantosa. Justin Timberlake, impressionante, faz um dos garotos que se vêem numa enrascada: ao "sequestrarem" um jovem, irmão de um inimigo da hora, percebem que o rapaz tem mais afinidade com eles do que com sua família. A trama se passa toda em um dia, é real e caminha para a tragédia . 100 escovadas antes de dormir (DVD Sony) fala da mesma geração, embora o filme se passe numa pequena cidade litorânea da Itália. Baseado em livro de sucesso, o filme tem a mesma atmosfera de Alpha dog, embora mais centrado nas questões sexuais e afetivas de uma adolescente. Outra porrada amarga, embora com brechas de esperança. Com a enxurrada de filmes que estréiam rapidamente nas vésperas do Oscar, muita coisa boa passa batida. É o caso de Filhos da esperança (DVD Universal), que agora sai em DVD pela Universal. Baseado em livro da P.D. James, uma das mestras do crime. Dirigido por Alfonso Cuarón (de E sua mãe também) a trama de estranha força fala de uma juventude em extinção, pois num futuro próximo não haveria mais gestações, provavelmente pelos efeitos da poluição. Clive Owen faz o herói que tenta proteger a primeira mulher grávida em muito tempo. Julianne Moore faz uma líder terrorista numa das participações mais bombásticas dos últimos tempos. Filhos da esperança trata da confiança em algo novo, mas que certamente não virá dos descaminhos de muitos dos jovens de hoje.

[Uma memória afetiva ou a estética da voz]

Luciano Pavarotti será para muito tempo "a" referência para uma enormidade de papéis em óperas e de popularidade imbatível na divulgação do canto lírico. Desengonçado no palco, pouco expressivo como ator e impossível de ser inserido na lista dos dez mais bonitos do show-business, Pavarotti marcou sua passagem por este planeta sendo o melhor no que tinha de melhor: cantar. Quem o assistiu nos palcos chorou, riu e se perdeu em sentimentos desconhecidos. O tenor era capaz de fazer despertar o amor pela mamma italiana mesmo para os descendentes de nazistas! Muitos quilos a mais e com a surpreendente popularidade numa arte que parecia impossível para a juventude, foi acusado de oportunista quando começou a fazer crossover entre ópera e música pop. Ledo engano. Sua série de megashows em Modena para auxiliar crianças, todos gravados em CDs e DVDs, goste-se ou não, são um tratado da cultura musical dos anos 80 e 90. Pavarotti veio, marcou e se foi comprovando que a estética do corpo é zero perto da estética da voz.

Nesta coluna, comovidos pela morte do grande cantante, cabe uma história muito pessoal. A primeira vez, ao vivo no Metropolitan Ópera em Nova York foi no L' Elisir d'amore, ópera de Donizetti. Houve uma tensão inicial quando, antes de subir o pano, o manager foi ao palco e microfone em punho anunciou para uma platéia angustiadíssima que sim, o Sr. Pavarotti iria cantar. Mas por causa de uma gripe forte ele pedia a indulgência da platéia. Aplaudimos todos aliviados e veio o grande. Lá pelo meio do segundo ato acontece a mais famosa ária solo da ópera: una furtiva lacrima [uma lágrima furtiva]. Durante a ária a orquestra silencia e o tenor sustenta a música em uma série de cadências ascendentes e descendentes que termina num dificílimo Dó de peito sustentado indefinidamente. Luciano Pavarotti inicia a cadência, parando em pausa inesperada - 4000 pessoas em suspenso - e liberando a mais bela e perfeita nota, superior a tudo que já ouvimos em disco, e termina a ária - 4000 pessoas em delírio! Não havia ainda legendas e ao olhar em torno aquele amálgama de alemães, italianos, orientais, americanos, turistas inidentificáveis, todos haviam entendido o que se passara ali. Não havia lágrimas furtivas, mas plenas de alívio e gratidão pela beleza condensada e dividida naquele momento. Foram 10, 15, infinitos minutos de aplausos frenéticos, que importa o tempo real? Estávamos lá!

Pavarotti morreu! É possível esquecer o inesquecível? Nem vamos tentar.

Luciano e Andres, foto de 1994, quando este tentava explicar ao tenor o que
significa ‘meu Brasil brasileiro' da "Aquarela do Brasil", de Ary Barroso,
que o grande cantaria no final da Copa, em Los Angeles.

Ah, o Fiks tirou a foto.

Ah, de novo, Pavarotti nunca entendeu!

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