Os Miseráveis

Créditos da imagem: Os Miseráveis/Universal Pictures/Reprodução

Filmes

Crítica

Os Miseráveis

A miséria segundo Tom Hooper

31.01.2013, às 20H00.
Atualizada em 11.10.2019, ÀS 10H16

Em um momento ordinário nas ruas da Paris do século XIX, Victor Hugo descobre o peso das classes sociais. Ao captar o ódio nos olhos de um homem pobre que observa um nobre descer da sua carruagem, o escritor, criado no espírito da monarquia, percebe que a desigualdade não é apenas uma situação aceitável por conta de sua natureza econômica – o luxo dos ricos dá emprego aos pobres -, mas uma questão humana, onde a opulência de poucos leva à miséria de muitos.

Depois de trinta anos de trabalho, em abril de 1862, o resultado máximo desta troca de olhares é publicado.  Do sucesso imediato – milhares de exemplares vendidos em apenas 24 horas pelas ruas de Paris e publicações simultâneas pelo mundo - Os Miseráveis ganhou incontáveis adaptações ao cinema e à TV (existem versões indianas, japonesas, coreanas, árabes e brasileiras para o épico). O alcance da obra levou até mesmo a uma improvável versão musical, apresentada pela primeira vez em 1980 em um teatro de Paris. Cinco anos depois, Les Mis, como ficou informalmente conhecido, chegou aos palcos ingleses para se tornar um dos musicais mais famosos e encenados da história.

Com a confiança e o apoio pós-Oscar, adquiridos com O Discurso do Rei, Tom Hooper tomou para si a missão de levar Os Miseráveis mais uma vez ao cinema, desta vez na versão embalada pelas composições de Claude-Michel Schönberg e letras de Alain Boublil e Jean-Marc Natel (traduzidas para o inglês por Herbert Kretzmer). Assim, a história de redenção de Jean Valjean (Hugh Jackman), condenado por roubar um pedaço pão para sua irmã e sobrinhos famintos, começa  aqui com uma canção.

Trocando diálogos por estrofes (o filme é todo cantado, salvo algumas palavras) o musical de Os Miseráveis busca apresentar nos seus 158 minutos a essência do testemunho social de Vitor Hugo. A versão soa estranha àqueles acostumados com musicais mais leves ou para quem simplesmente odeia o gênero. Hooper consegue criar, porém, uma versão “realista” dentro de um universo teatral.

Ao colocar seus atores para cantar ao vivo (no lugar de gravar as canções antes em estúdio, prática usual em filmes musicais) o filme transforma simples encenação em atuação. Logo, no lugar das afinadíssimas, e por vezes artificiais, performances da Broadway, temos uma espécie de monólogo dos personagens que não existiria em uma adaptação convencional da obra. O desabafo de Fantine (Anne Hathaway) em “I Dreamed a Dream”, é um bom exemplo. Depois de perder o emprego na fábrica e se prostituir para sustentar a filha Cosette, a personagem canta sobre a morte dos seus sonhos – “A vida matou o sonho que sonhei”. A escolha pelas canções ao vivo, porém, não torna o filme imediatamente em um produto para todos públicos. As quase três horas cantadas são, sim, cansativas, e ora desafinadas. Há espaços onde os ouvidos pedem uma fala simples, ao invés de uma forçada melodia.

O “realismo teatral” de Hooper é também estético. O diretor conta mais uma vez com Danny Cohen (diretor de fotografia de O Discurso do Rei) para recriar um gênero clássico de forma autoral – enquadramentos obtusos, close-ups com lentes grande-ocular (distorcendo a perspectiva do quadro) e a descentralização dos objetos, por exemplo. Essa visão ora serve bem aos personagens, como a bela sequência em que Jean Valjean decide honrar a oportunidade dada pelo Bispo Myriel, que o perdoa pelo roubo da prataria da igreja e o presenteia com castiçais - também de prata. A câmera consegue acompanhar as dúvidas de Valjean, na competente e emocional atuação de Jackman, enquanto o personagem pesa suas ações e se prepara para começar uma nova história.

Já em outros momentos, essa estética se torna mero capricho. Quando o inspetor Javert (Russell Crowe) clama às estrelas por ajuda para capturar o criminoso Jean Valjean, a paisagem criada digitalmente fica claramente artificial em meio às ginásticas fotográficas de Hooper e Cohen para mostrar a vertigem metafórica e física do seu personagem, que canta – no topo de um edifício – sobre céu e inferno.  Com cenários grandiosos e um trabalho cuidadoso de direção de arte, há também um compromisso pontual com uma paleta representativa de cores, que coloca a ainda doce Fantine de vestido rosa entre às trabalhadoras uniformizadas de azul, ou Enjolras (Aaron Tveit), o forte líder revolucionário, a trajar a jaqueta vermelha da honra e da convicção.

Jean Valjean, Javert, Fantine, Cosette (interpretada por Isabelle Allen e Amanda Seyfried), Marius (o nobre revolucionário que se apaixona por Cosette vivido por Eddie Redmayne), Enjolras, Thénardier e sua esposa (o casal trambiqueiro interpretado por Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter), Éponine (a filha dos Thénardier vivida por Samantha Barks), e Gavroche (o sábio menino de rua interpretado por Daniel Huttlestone) cantam as próprias misérias e conduzem o espectador através das melodias.  Há peso e tristeza, como em “Look Down” ou “I Dreamed a Dream”, mas há também humor, como em “Dog Eats Dog”, uma das melhores sequências graças às atuações de Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter. Há também o sentimento de revolução de “Do You Hear the People Sing?”, canção que reúne os personagens em torno do desejo de mudança: a superação da miséria.

Assim como o romance de Victor Hugo foi ridicularizado pelos marxistas por seu sentimentalismo, a versão musical de Os Miseráveis pode parecer uma bobagem para o público mais racional. O filme de Hooper consegue, contudo, traduzir, à sua maneira, a qualidade épica do texto clássico. Se transformar uma história de redenção em espetáculo - visual e sonoro – o afasta do peso das questões sociais, o mantém verdadeiro à essência daquele primeiro olhar exaltado que despertou em Victor Hugo o sentimento de mudança.

Nota do Crítico
Ótimo
Os Miseráveis
Les Misérables
Os Miseráveis
Les Misérables

Ano: 2012

País: Inglaterra

Classificação: 14 anos

Duração: 157 min

Onde assistir:
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