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Notícia

Uma Mulher Sob Influência

Um legítimo Cassavetes safra 1974

29.03.2007, às 00H00.
Atualizada em 03.11.2016, ÀS 09H00

Estamos diante de um Cassavetes safra 1974. Portanto já há uns bons anos na estrada; com certeza mais maduro. O que não significa acomodado, e sim com um domínio muito mais amplo e seguro sobre o ofício que ajudou a transformar, a ponto de fazer seus "recados" serem muito mais bem compreendidos, ao mesmo tempo que mais certeiros e letais quanto ao alvo a ser atingido. Já aqui se nota que seu modo de filmar de perto, respirando e transpirando com os atores, está mais sofisticado, mais aprumado, e que a certeza de que domina a técnica que praticamente reinventou se faz importantíssima para realçar o tom humanista, preocupado e depurador que busca, com seus personagens, capturar particularidades da eterna tragédia do homem.

Não há pausa "emocional" em Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence, 1974). E não há pausa narrativa. O filme tanto cutuca insistentemente a alma da mulher que ama apaixonadamente seu marido e todo seu entorno - amigos de trabalho, objetos que possam lembrá-lo, modo de fazer comida e preferências e, principalmente, os filhos, que retribuem esse amor mais sincero do que qualquer outro que lhes é oferecido durante o transcorrer da película -, como, para que isso tenha força e impacto suficientes no espectador, é insistente também em não deixar o ritmo cair em vácuos ou vazios por tempo que possa parecer algo prolongado e dispersador. A câmera continua perseguindo os personagens muito de perto e realça como nunca as angústias e medos - realça também os poucos momentos de felicidade plena que existem também no longa, já que realmente não se trata de peça que impeça, por princípio, a possibilidade da alegria ou da esperança ao seu final.

A figura - impecável em sua interpretação - de Mabel (Gena Rowlands) é um retrato importantíssimo e sem muitos questionamentos do início dos anos 1970. Era muito comum se ouvir dizer, naquela época, que uma mulher havia enlouquecido (literalmente, no sentido mais primitivo da palavra), e quase sempre apontando para o "excesso de amor" como a causa principal desse deslocamento do centro do comportamento dito lógico. Era mais comum mesmo ouvirmos falar de alguém que havia enlouquecido e tinha sido internado. O curioso é que nos dias atuais já não se ouve tantos relatos a esse respeito (mudou o comportamento da medicina quanto à avaliação, mudaram os medicamentos que seguram com mais "capacidade" a barra, teria mudado o comportamento da mulher, que tomou definitivamente pé de seu papel, deixando de se submeter ao homem como figura única e amparo imprescindível, o que naquela época já estava se configurando e poderia ser tomado como uma das razões para tais "enlouquecimentos" - não há uma generalização nesse questionamento, mas era evidente um certo comportamento ditado por subjugação através dos tempos -, ou um pouco de tudo, junto?), mas naquele momento o cinema retratou muito isso, em diversas obras, sendo que uma das mais impactantes está representada nesse filme.



E tanto Gena Rowland quanto o modo Cassavetes de fazer "cinema independente" são notáveis. As reações criadas por ela, os trejeitos, o olhar angustiado por vezes, meigo e esperançoso em outras, maternal em mais outras; seu posicionamento diante das câmeras ágeis (quando se oferece inteira e "desnudada" ao "olhar" da lente) que permite transparecer todo o embate interior sem ter que recorrer ao chavão da interpretação que "excede e chuta o balde para se fazer verdadeira"; a maneira como o diretor cria os momentos com uma câmera que revela um ambiente (a casa) de ambivalência - lá há o aguardo paciente do amor, existe um lar constituído, os filhos amados, mas também se delineia o desespero ante a expectativa do sexo, se pensa nos (amados) filhos como um entrave momentâneo a essa expectativa, e existem muitas figuras satélites que comparecem para ampliar situações de dubiedade - é concretizada com o modo de corte e junção abruptos "inventados" por ele, em que a preparação dramática é encarada de modo muito peculiar em comparação ao comportamento padrão do cinema convencional. Modo Cassavetes de fazer cinema.

Peter Falk completa notavelmente o outro lado da moeda. Com interpretação precisa, contida e ao mesmo tempo explosiva (conforme a música pede), sabedor das angústias que incomodam o outro lado, seu Nick empresta ao lado "macho" do comportamento "padrão" humano uma sabedoria/loucura digna de registro - é de se pensar ao final o que é ser louco; quem é louco; como se pode "incentivar" a loucura com atitudes extremas e primitivas. O ator também é figura com cara dos "70" e isso, hoje em dia, só faz reforçar e melhorar a importância de uma obra bem datada. Porque existem as obras bem datadas e John Cassavetes as têm aos montes no currículo. O momento, próximo ao final, em que os filhos tentam "defender" a mãe que se mostra totalmente indefesa e em momento de extrema confusão, é espetacular. A cena final, com o casal interagindo em silêncio, é emocionante e importantíssima para dar a verdadeira cara a um filme que pode assustar bastante aos mais sensíveis por boa parte de sua trajetória.

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Cid Nader é editor do site cinequanon.art.br

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