Estamos diante de um Cassavetes safra 1974. Portanto já há uns bons anos na estrada; com certeza mais maduro. O que não significa acomodado, e sim com um domínio muito mais amplo e seguro sobre o ofício que ajudou a transformar, a ponto de fazer seus "recados" serem muito mais bem compreendidos, ao mesmo tempo que mais certeiros e letais quanto ao alvo a ser atingido. Já aqui se nota que seu modo de filmar de perto, respirando e transpirando com os atores, está mais sofisticado, mais aprumado, e que a certeza de que domina a técnica que praticamente reinventou se faz importantíssima para realçar o tom humanista, preocupado e depurador que busca, com seus personagens, capturar particularidades da eterna tragédia do homem.
Não há pausa "emocional" em Uma Mulher Sob Influência (A Woman Under the Influence, 1974). E não há pausa narrativa. O filme tanto cutuca insistentemente a alma da mulher que ama apaixonadamente seu marido e todo seu entorno - amigos de trabalho, objetos que possam lembrá-lo, modo de fazer comida e preferências e, principalmente, os filhos, que retribuem esse amor mais sincero do que qualquer outro que lhes é oferecido durante o transcorrer da película -, como, para que isso tenha força e impacto suficientes no espectador, é insistente também em não deixar o ritmo cair em vácuos ou vazios por tempo que possa parecer algo prolongado e dispersador. A câmera continua perseguindo os personagens muito de perto e realça como nunca as angústias e medos - realça também os poucos momentos de felicidade plena que existem também no longa, já que realmente não se trata de peça que impeça, por princípio, a possibilidade da alegria ou da esperança ao seu final.
A figura - impecável em sua interpretação - de Mabel (Gena Rowlands) é um retrato importantíssimo e sem muitos questionamentos do início dos anos 1970. Era muito comum se ouvir dizer, naquela época, que uma mulher havia enlouquecido (literalmente, no sentido mais primitivo da palavra), e quase sempre apontando para o "excesso de amor" como a causa principal desse deslocamento do centro do comportamento dito lógico. Era mais comum mesmo ouvirmos falar de alguém que havia enlouquecido e tinha sido internado. O curioso é que nos dias atuais já não se ouve tantos relatos a esse respeito (mudou o comportamento da medicina quanto à avaliação, mudaram os medicamentos que seguram com mais "capacidade" a barra, teria mudado o comportamento da mulher, que tomou definitivamente pé de seu papel, deixando de se submeter ao homem como figura única e amparo imprescindível, o que naquela época já estava se configurando e poderia ser tomado como uma das razões para tais "enlouquecimentos" - não há uma generalização nesse questionamento, mas era evidente um certo comportamento ditado por subjugação através dos tempos -, ou um pouco de tudo, junto?), mas naquele momento o cinema retratou muito isso, em diversas obras, sendo que uma das mais impactantes está representada nesse filme.
E tanto Gena Rowland quanto o modo Cassavetes de fazer "cinema independente" são notáveis. As reações criadas por ela, os trejeitos, o olhar angustiado por vezes, meigo e esperançoso em outras, maternal em mais outras; seu posicionamento diante das câmeras ágeis (quando se oferece inteira e "desnudada" ao "olhar" da lente) que permite transparecer todo o embate interior sem ter que recorrer ao chavão da interpretação que "excede e chuta o balde para se fazer verdadeira"; a maneira como o diretor cria os momentos com uma câmera que revela um ambiente (a casa) de ambivalência - lá há o aguardo paciente do amor, existe um lar constituído, os filhos amados, mas também se delineia o desespero ante a expectativa do sexo, se pensa nos (amados) filhos como um entrave momentâneo a essa expectativa, e existem muitas figuras satélites que comparecem para ampliar situações de dubiedade - é concretizada com o modo de corte e junção abruptos "inventados" por ele, em que a preparação dramática é encarada de modo muito peculiar em comparação ao comportamento padrão do cinema convencional. Modo Cassavetes de fazer cinema.
Peter Falk completa notavelmente o outro lado da moeda. Com interpretação precisa, contida e ao mesmo tempo explosiva (conforme a música pede), sabedor das angústias que incomodam o outro lado, seu Nick empresta ao lado "macho" do comportamento "padrão" humano uma sabedoria/loucura digna de registro - é de se pensar ao final o que é ser louco; quem é louco; como se pode "incentivar" a loucura com atitudes extremas e primitivas. O ator também é figura com cara dos "70" e isso, hoje em dia, só faz reforçar e melhorar a importância de uma obra bem datada. Porque existem as obras bem datadas e John Cassavetes as têm aos montes no currículo. O momento, próximo ao final, em que os filhos tentam "defender" a mãe que se mostra totalmente indefesa e em momento de extrema confusão, é espetacular. A cena final, com o casal interagindo em silêncio, é emocionante e importantíssima para dar a verdadeira cara a um filme que pode assustar bastante aos mais sensíveis por boa parte de sua trajetória.
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Cid Nader é editor do site cinequanon.art.br