Quem cresceu com videogames no Brasil nos últimos 25 anos com certeza já teve alguma interação com a pirataria. A cultura de desbloquear o console e jogar uma adaptação nacional de algum jogo se espalhou dentro do país como um vírus, e apesar de hoje termos presença oficial da maioria das empresas grandes do mercado, esse não foi sempre o caso.

Foram anos e anos de jogos a R$ 10 na feira, tutoriais de como desbloquear o seu console, mods que transformavam os games em algo verdadeiramente brasileiro. É essa época, o auge do mercado cinza, que os diretores e roteiristas Pedro Falcão Hugo Haddad exploram no webdocumentário Paralelos, lançado na última quarta (9) pela Red Bull.

"A ideia é um tanto óbvia pra quem cresceu jogando games nos últimos 20, 30 anos. Não dá pra falar de games no Brasil sem falar dos seus clones e das gambiarras típicas do nosso mercado," disse Falcão, cujos créditos na indústria passam pelo Kotaku Brasil e Red Bull Games, com exclusividade ao Omelete. "O que me surpreendia, desde quando comecei a escrever sobre games, é que esse assunto nunca havia sido abordado de forma direta, muito por conta do tabu que existe em torno da pirataria. Então, o melhor jeito que encontramos de falar sobre isso foi sendo honesto com o assunto abordado: se não existisse pirataria, não existiria o mercado de games no Brasil. A partir daí desenvolvemos o resto da história."

"Quando o Falcão surgiu com a ideia fiquei super empolgado pois sabia que tínhamos em mãos uma história que ainda não havia sido contada. Pesquisamos e confirmamos isso, não encontramos nenhum outro documentário que contasse esse lado “paralelo" da história dos videogames originalmente feitos no Brasil," adicionou Haddad. "O desenvolvimento do roteiro seguiu em paralelo à busca pelos personagens, a cada novo contato que fazíamos surgiam novas histórias e consequentemente novos personagens para conversarmos."

"Sabíamos que seriam episódios curtos e isso nos ajudou a ir atrás de histórias realmente importantes para o desenvolvimento dos games no país," conta Haddad. Foram algumas madrugadas de trabalho até termos o roteiro 100% pronto para começarmos a filmar. Por incrível que pareça a filmagem e a edição foram os processos mais tranquilos pois os personagens eram realmente incríveis e sabíamos muito bem a história que queríamos contar."

O grande tabu

Pirataria de games é um dos assuntos mais complicados da indústria no Brasil, entretanto não é um dos mais debatidos.  Foi justamente isso que levou a dupla a criar Paralelos. A prática foi o que apresentou o mundo dos games a diversas pessoas, que consumiam conteúdo pirata sem nem imaginar que aquilo era considerado um crime. Quem aqui não conhece um amigo que optou pelo PS1, PS2 ou Xbox 360 justamente porque era possível desbloquear o console? Mas hoje, é raro ver o assunto em pauta nas conversas sobre jogos.

"Acredito que o tabu existe porque surgiu uma visão de que a situação do nosso mercado nacional de games só era precária por conta da pirataria. Acontece que esse discurso foi muito bem articulado pelas grandes empresas de games que, depois de anos de negligência com o consumidor brasileiro, finalmente decidiram abocanhar uma fatia do nosso mercado, que estava aos poucos se popularizando no começo dos anos 2000. Deixando de lado o tabu e esse discurso sem fundamento, percebemos que era absolutamente fundamental contar a história e mostrar a construção cultural por trás da pirataria no Brasil. Se a gente mesmo não der valor pra nossa criatividade, quem vai dar," Falcão, que foi quem teve a ideia de Paralelos, explicou Falcão.

As vezes esquecemos o quão era difícil ter acesso a games no passado, se hoje temos um mercado consolidado devemos muito a esses caras que aparecem no documentário e eles precisavam ser ouvidos para essas histórias não se perderem com o tempo," Haddad contribui. "A mídia tradicional sempre dependeu da grana das grandes marcas para sobreviver. Se antigamente uma revista de games falasse de pirataria como algo importante para o mercado ela corria sérios riscos de ficar sem patrocínio para a edição do mês seguinte, então sempre que o assunto era abordado era de forma pejorativa, isso foi trazendo o peso negativo pro assunto."

Histórias para contar e guardar

Além de mostrar como a pirataria ajudou a apresentar os games para um público maior no Brasil, Paralelos também mostra as diversas produções nacionais feitas às margens da lei. Produções 100% brasileiras que estão se perdendo com o tempo. Uma história que está totalmente interligada à cultura dos games no país, e que aos poucos vai se apagando.

"Partes enormes da história dos games já não existem mais hoje. Todos os dias, dezenas de projetos nunca lançados, clones que nunca se popularizaram, fliperamas esquecidos em galpões e pequenas realizações criativas de desenvolvedores brasileiros são pulverizadas da história por conta do enorme volume de conteúdo e informação da era digital," explica Falcão. "Preservar a história dos games no Brasil é preservar a própria cultura brasileira de vanguarda dos últimos 20, 30 anos. Muita gente ainda não consegue enxergar a importância da preservação dos games, consoles e fliperamas, mas está mais do que na hora de prestarmos atenção em nós mesmos e na nossa cultura."

Assistir a Paralelos é uma experiência de descobrimento. O documentário traz diversos fatos curiosos e histórias divertidas sobre o crescimento do mercado de games no Brasil. Para Pedro e Hugo, o processo de produção também foi recheado de fatos inusitados. "Pra mim a melhor descoberta foi que existia bala perdida no mapa do CS Rio! Eu fui viciado nesse jogo e diversas vezes suspeitei que no meio de um jogo eu morria sem ninguém ter me matado," brinca Haddad. 

"Muitos desses momentos e surpresas que encontramos no meio do caminho tiveram que ficar de fora para dar lugar aos temas centrais, que seriam fundamentais pra contar a história que nunca tinha sido contada sobre pirataria e games no Brasil. Espero muito um dia poder mostrar tudo o que descobrimos com essas entrevistas," comenta Falcão. Haddad expressa o mesmo sentimento, e não descarta uma produção maior. "Temos 20 horas de entrevistas captadas, quem sabe um dia conseguimos tempo pra editar um longa metragem que conte todos os outros segredos que descobrimos?

São muitas histórias de valor, que mostram um lado importantíssimo da cultura de games no Brasil. Pirataria é crime, ter o jogo original sempre é melhor e todos querem ver a indústria brasileira mais e mais avançada, como a de países na América do Norte e Europa. Paralelos argumenta, entretanto, que isso não quer dizer que devemos esquecer o passado.

"Se metade das pessoas que assistirem o documentário sentirem orgulho e vontade de preservar a a história dos video games feitos no Brasil eu consegui realizar o que eu queria quando comecei essa produção com o Pedro Falcão," arremata Haddad. "Temos uma história original única e muito rica de adaptações e modificações feitas no nosso país, muito do que é produzido hoje em dia se deve ao trabalhos desses caras que 'pirateavam' as coisas no passado."

"Pessoalmente, o meu maior objetivo com esse documentário é abrir os olhos de todo mundo que nunca conectou a importância da contracultura da pirataria com a fomentação dos games e consoles nacionais. A história do videogame no mundo inteiro sempre foi de superação de adversidades, desde os seus primórdios," diz Falcão, resumindo bem a mensagem do documentário.

Paralelos pode ser visto de graça no site da Red Bull Brasil.