Após a morte de J.R.R.Tolkien (O Senhor dos Anéis) a comunidade de leitores e estudiosos de fantasia épica passou a especular quem herdaria o brasão de mestre do gênero, gerando discussões inúteis e infinitas. Muitos apontaram John Holbrook Vance, conhecido como Jack Vance, renomado por sua obra de ficção científica, mas sempre lembrado por uma obra de fantasia importante e cada vez mais influente. Foi escolha de muito gosto: a obra de Vance foi e é influência das maiores na fantasia moderna, inspirando outros autores, ilustradores e criadores de RPGs.

Nascido em San Francisco em 1916, Vance estudou engenharia, física e jornalismo, antes de se voltar para a literatura. É um homem dos mais reservados: sabe-se tão pouco de sua vida - vive em algum ponto da Califórnia, casado, um filho e é um dedicado músico de jazz - que velhos rumores afirmavam que Jack Vance era o pseudônimo de um escritor já falecido (!), apesar de ele, nos últimos anos, ser presença habitual de convenções de ficção científica e fantasia.

Sua marca como escritor é levar ao máximo do detalhe e da beleza uma característica permeia a ficção científica há longo tempo: o diálogo com fantasia pura, tomando desta cenários, personagens típicas, criaturas e temas. Em Vance planetas distantes e esquecidos, cujas particularidades obrigaram o homem a se adaptar cultural e, algumas vezes, fisicamente, são simples pretextos para a criação de mundos que nada devem a contos de fadas e narrativas de fantasia épica em termos de imaginação desenfreada. Alguns exemplos que falam por si: uma colônia situada num planeta repleto de luz e perfumes é como uma cidade do país das fadas; as criaturas de outros mundos são chamadas de dríades, dragões, guerreiros, entre outros nomes; são freqüentes nos cenários castelos e fortalezas imemoriais que encerram sociedades exóticas; mundos remotos criam culturas baseadas em honra, coragem e grandes batalhas de espadas e escudos.

Claro está que essas obras não vieram somente de uma imaginação fervilhante. Vance é um grande interessado em antropologia e artes, e muitos cenários de suas obras são baseados na descrição de tribos árabes pré-islamismo e celtas, entre outras. Essa torrente materializa-se num texto correto, desprendido, por vezes pedante, e repleto de palavras comuns ao lado de outras incomuns, gerando efeitos muito plásticos e inesperados.

As obras

Vance surgiu como profissional no fim dos anos 40, publicando contos em revistas; seu primeiro livro é The dying Earth, de 1950, obra importante pela beleza das descrições, personagens interessantes e por estabelecer um cenário hoje clássico: uma Terra envelhecida e alterada, em que a humanidade se entregou a hedonismo, desespero ou simples degeneração, no qual a ciência se perdeu e a magia e seus produtos são o elemento mais importante e presente da vida. A partir de então sua produção foi cada vez mais rica.

Em 1963 surge The dragon masters. Esse livro curto e denso (pouco mais de cem páginas) é talvez o ápice da fusão que ele opera: num futuro muito distante, em que a humanidade espalhou-se universo afora, dividindo-se em uma miríade de mundos, uma guerra interplanetária destruiu a galáxia. A narrativa se passa muitos anos após essa guerra, em Aerlith, mundo desolado e pedregoso desprovido de qualquer tecnologia sofisticada, castigado por escaramuças intermináveis entre seus habitantes, que criaram, cruzando raças de um grande lagarto local, os dragões, sanguinários répteis usados como infantaria e montaria, de alguma inteligência, providos de pavorosas armas naturais e nomes sugestivos: Assassinos Galopantes, Assassinos de Chifre Comprido, Megeras, Demônios, Monstros Azuis. Para muitos, é a obra maior de Vance, que recebeu um Hugo e um Nebula por ela.

Outro livro memorável é Maske: Thaery (no Brasil, Planeta Duplo), cujo enredo sobre códigos de conduta, papéis sociais opressores e os excessos cometidos em nome da liberdade também se situa num mundo medieval/ espacial.

Conhecido por suas séries de romances, entre elas destacam-se a trilogia Durdane, Alastor (3 títulos), Planet of adventure (4 títulos) e a Saga dos príncipes demônios (5 títulos). Sua produção de histórias curtas é menor e menos notável, destacando-se os contos de Dying Earth, a novela Os milagreiros, o famoso Moon moth e When the five moons rise. Sua temática é extensa, mas podemos identificar como constantes a defesa da liberdade individual e retratos diversos da variedade e riqueza da vida.

Vance em português: uma busca para aventureiros

Ficção científica e fantasia épica receberam, por muito tempo, atenção amadora do meio editorial brasileiro; coleções mal-planejadas, traduzidas e distribuídas contribuíram para que a imagem do gênero, entre os leitores de literatura em geral, seja das piores. Muitos e importantes autores foram vítimas da falta de seriedade de editores brasileiros para com o gênero. Resultado: encontrar as poucas edições existentes de seus livros é tarefa que, por vezes, lembra as longas e aventurosas sagas narradas nos próprios. E Vance não escapou dessa; não bastasse que de seus cerca de 60 livros menos de doze existam em português, quase todos estão fora de catálogo. Encontrá-los exige visitas e mais visitas exaustivas a bancas, sebos e bibliotecas, e com dificuldade variada.

Dos contos e novelas, somente três foram transpostos ao português: Mazirian, o mágico, conto que abre a coletânea Magos, editada pela Melhoramentos em 1990, faz parte do lendário Dying Earth; a mesma Melhoramentos editou Encantamentos, em que figura a excelente novela Os milagreiros; por fim, na antologia A sonda do tempo, organizada por Arthur C. Clarke, há ‘Os oleiros de Firsk. No que diz respeito aos romances, nada muito melhor: The dragon masters teve uma única edição(O planeta dos dragões), da Francisco Alves, em 1979. A mesma editora publicou Planeta duplo, Marune: Alastor 933, Star king, A máquina de matar e O palácio do amor (os últimos três parte da Saga dos príncipes demônios), todos nas suas extintas séries de ficção científica. Devido a uma boa distribuição e publicação mais ou menos recente, são as obras mais facilmente encontráveis, nas plagas brasileiras, do escritor dos escritores, segundo Isaac Asimov. Quanto a O homem sem rosto, As linguagens de Pao, Detetive galáctico, Enfírio e Ópera interplanetária, nem o mais poderoso mago os encontraria com facilidade. Os três primeiros são parte da Colecção Argonauta, de Portugal, mais antiga série em língua portuguesa de ficção científica. É preciso paciência e disposição ao procurar esses livrinhos (a Argonauta é editada em formato de bolso) imprevisíveis: pode-se perder meses em busca de um único exemplar ou encontrar dezenas em um único sebo. Quanto a Enfírio, um libelo contra as tiranias, publicado pela Galeria Panorama, de Portugal, em 1969, e Ópera interplanetária, divertida narração das aventuras de uma orquestra que viaja galáxia afora, que saiu pela Rio Gráfica no começo dos anos 70, são raros como o espetáculo de um dragão a esvoaçar entre as estrelas.