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Quadrinhofilia: Revendo <i>Homem-Aranha</i> de cabeça fria

Quadrinhofilia: Revendo <i>Homem-Aranha</i> de cabeça fria

01.07.2004, às 00H00.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H40

Homem-Aranha
Spider-Man
EUA, 2002
Ação




Direção: Sam Raimi



Elenco: Tobey Maguire, Willem Dafoe, Kirsten Dunst, James Franco, J.K. Simmons, Randy Poffo, Joe Manganiello, Cliff Robertson, Rosemary Harris, Ted Raimi, Bill Nunn

Agora é fato: Homem-Aranha é um estrondoso sucesso. Não que as suas mais de quatro décadas de existência nos quadrinhos possam ser esquecidas, ou consideradas um fracasso. Pelo contrário. Mas acontece que, até 2002, o aracnídeo nunca tinha sido alçado à sua real condição de ícone pop mundial.

O que mudou foi o lançamento do longa-metragem dirigido por Sam Raimi e estrelado por Tobey Maguire, Kirsten Dunst e Willem Dafoe. Desde então os fãs puderam esquecer micos, como o seriado com atores produzido nos anos 70. Sincera, a versão de Raimi cativou não só quem já curtia o herói, mas também conquistou novos seguidores para as aventuras do personagem. O projeto é uma espécie de auto-presente do diretor, que na sua adolescência acompanhava os problemas de Peter Parker e com o filme partilhava sua visão com os fãs.

O homem certo, no lugar certo

Para começo de conversa, quem em sã consciência diria que os diretores de um estúdio seriam loucos de dar um projeto da envergadura do Homem-Aranha para um diretor como Raimi? Em meio a Spielbergs, Lucas e Camerons, quem imaginaria que a responsabilidade de transpor as HQs criadas por Stan Lee e Steve Ditko para o cinemão caberia a um sujeito notabilizado por filmes trash de zumbis e demônios (Uma Noite Alucinante e suas seqüências) e que tinha no currículo ainda um projeto de super-herói igualmente trash (Darkman - Vingança Sem Rosto) e alguns filmes sérios (Um Plano Simples, O Dom da Premonição) de relativo destaque? Pior, o cara ainda era um dos produtores dos seriados de aventura mais improváveis da história da TV: Hércules e Xena. Mas eis que, às vezes, o impossível acontece e as coisas dão certo. Peter Jackson (outro filho do cinema trash) e O Senhor dos Anéis que o digam...

Raimi foi contratado enquanto trabalhava no thriller sobrenatural O Dom da Premonição (The gift - 2000), de onde importou Rosemary Harrys e J. K. Simon para viverem respectivamente a Tia May e J.J. Jameson. Terminando a produção a toque de caixa, Raimi caiu de cabeça no projeto dos seus sonhos. Ainda em 2001, um teaser trailer arrepiava o público: um assalto maluco, uma fuga espetacular e um helicóptero preso numa teia gigante entre as finadas torres gêmeas do World Trade Center. Afinal, quem quer realidade num filme de super-herói? O dito só dá as caras no finalzinho, para mostrar ao público que é bom confiar no taco de Raimi.

Para agradar a todos, ainda mais aos fãs

E Raimi não deixa a peteca cair mesmo. Ele usa sua formação em filmes B na construção de cenas memoráveis e abusa das referências às HQs. Sem falar que ele peita um final nada romântico, em vez de se render ao típico final feliz hollywoodiano. E para agradar seus próprios fãs, Raimi ainda descola uma ponta para Xena (Lucy Lawless), o eterno parceiro e canastrão profissional Bruce Campbell (o Ash de Uma Noite Alucinante) e claro, o carro do diretor, presente em quase todos os seus filmes.

Mas não é na linguagem ou nas auto-referências que ele constrói sua obra. Raimi está até comportado no filme, como se não quisesse soltar demais sua câmera alucinada e assustar o público não habituado a seus filmes mais doentios e divertidos. No extremo respeito à caracterização dos personagens ele agrada aos fãs: Tia May e Jameson, apesar das pequenas participações estão perfeitos. O editor do Clarim Diário parece ter saltado dos quadrinhos. Em aparições relâmpago temos ainda, Flash Thompsom, o editor boa-gente Robbie Robertson e Betty Brant, a primeira namorada do herói nas HQs. Tio Ben, que ficou famoso apesar de ter participado de apenas uma página na origem do herói, ganha mais frases do que em 40 anos de HQs.

Podando arestas, Raimi garante a compreensão para quem está chegando agora: para tornar Peter mais palpável ao espectador, sai o garoto super-gênio e fica o nerd inteligente. Com isso morrem os lançadores de teia e nasce a teia orgânica. Sacada esperta que rende boa comparação a outros fluidos grudentos que os meninos expelem a partir da adolescência... E, claro, temos Mary Jane (Kirsten Dunst). Nada amalucada como em seu surgimento nas HQs e mais Gwen Stacy (o grande amor do herói) do que nunca. Na verdade, sua personagem é a fusão do temperamento das duas. Afinal, Stacy morreu nos anos 70 e nenhum garoto de hoje sabe quem ela foi. Como o filme é para um público geral, MJ não morre ao ser atirada pelo Duende da ponte. Perde o filme em drama, mas aí seria pedir uma adaptação mais que perfeita, não?

Mas quem diria, Peter Parker (o do filme) é Peter Parker (o dos quadrinhos). Nerd, deslocado, ingênuo e, além do que acontecia nos quadrinhos, o alvo perfeito das humilhações impostas pelos colegas fanfarrões. Afinal, estamos num blockbuster e é necessário fazer o público médio entender qual o sentido da palavra "freak", toda vez que Parker e seus óculos de aro grosso aparecem na tela. A descoberta dos poderes, é recheada de momentos compartilhados com o espectador. Assim, descoberto que Parker, por trás de sua fachada de CDF é um um cara legal, a simpatia do público está no papo e é aberto o caminho para o herói nascer. Tobey Maguire é o interprete adequado ao papel. Tem aquela cara de joão-ninguém que o papel pede, não é um galã de ocasião e ainda consegue passar um ar de esquisitão sem dificuldades.

De forma esquemática conhecemos nosso futuro herói, sua vida, seus coadjuvantes...

Mas é claro que nem todos se identificariam com um garoto nerd. Ganhos os poderes, saem de cena os óculos, surgem dilemas financeiros (ele quer ter um carrão para impressionar uma garota) e, claro, a tragédia que marca o amadurecimento. Não à toa existe uma cena de formatura exemplificando o rito de passagem do garoto para homem. No caso, Homem-Aranha.

A partir daí surge o herói abnegado, salvando bebezinhos de prédios em chamas e batendo em punguistas. Mas o Aranha das telas ainda parece meio tímido, não é aquela metralhadora de piadas infames que irrita os adversários. Ainda é Peter Parker quem puxa o filme. Sua amizade com Harry Osborn (James Franco) e a paixão platônica por Mary Jane conduzem o filme de fato. Harry, por sinal, é um achado. Tinha tudo para ser um coadjuvante ruim. Daqueles que entram e saem sem fazer diferença. Mas os triângulos amorosos (não só pelo coração de Mary Jane, mas também pelo amor paternal do Sr. Osborn) criam uma tensão permanente no ar. Harry ganha a garota, já Peter tem a admiração de Norman Osborn.

A segunda metade do filme sofre um pouco com a velocidade dos acontecimentos. Se no começo tudo se desencadeia de maneira natural, agora há uma necessidade enorme de resumir os 10 primeiros anos das HQs em menos de 1 hora que resta na película. Enfim, por ser curto, o filme acaba deixando de ser melhor.

Na verdade, se formos prestar a devida atenção, descobrimos que a estrutura sobre a qual é construído o filme muito se assemelha à de outro sucesso baseado nos quadrinhos: Superman - O Filme (de Richar Donner - 1978). Veja só e reflita se não é basicamente o mesmo:

1. Começo nostálgico, mostrando a adolescência do herói

2. A perda da figura paterna

3. A chegada à cidade grande

4. Perigo diante da multidão, mocinha caindo de arranha-céu

5. Vôo romântico

Mudam os lugares, personagens e a forma como tudo se desenrola, mas é certo que Raimi apostou em cartas certas antes de entrar no jogo. Sem deméritos, pois o resultado foi bem satisfatório.

Claro, nem tudo é perfeito

Danny Elfman é o cara certo para fazer trilhas para filmes de HQ. Na verdade, ele tem feito a maioria. E talvez por isso mesmo deviam dar umas férias para o cara. Aqui ele cria uma trilha adequada, mas não um tema marcante para o herói. Há acordes épicos até um pouco demais para um pobre vigilante urbano. Mas nada que comprometa o resultado. Após dezenas de execuções no menu do DVD a gente se acostuma.

Buracos no roteiro são sempre inevitáveis. Veja só como Parker dá bandeira da sua identidade secreta: na escola, além de soltar teia em público, dá piruetas incríveis e vence o valentão Flash Thompson na maior facilidade. O empresário malandro de luta livre vê Peter sem a máscara. Será que ninguém se tocou de que o pequeno freak e o justiceiro mascarado que surgiu meses depois eram a mesmíssima pessoa? Pra sorte dele, ninguém.

Os efeitos especiais são bem satisfatórios. Os movimentos do aranha impressionam (a seqüência final que o diga), os vôos do Duende também. Mas não há como negar que, principalmente na seqüência em que Peter segue o assassino de seu tio, o dublê digital é mais que descarado. Em meio a toda a tendência de realismo que ronda a computação gráfica, o resultado é um desenho animado muito do caprichado. E só.

Há até mesmo alguns erros de continuidade feios na película:

  • No quarto, testando sua teia, Peter destrói seu abajur. No final da seqüência, lá está o abajur de volta à estante, novinho em folha.
  • Quando está desenhando seu uniforme, Peter é ora canhoto, ora destro.
  • Na cena da primeira batalha contra o Duende, a edição é meio confusa, como se faltassem pedaços das cenas. E, realmente foram cortados trechos; como é possível ver no DVD, nos comerciais de TV e cenas excluídas.
  • Quando o Aranha impede o assalto a um carro forte, os bandidos aparecem primeiro armados até os dentes. Depois, quando massacrados pelo herói, as armas simplesmente desaparecem de suas mãos.
  • E o tal tridente que o Duende tenta cravar na cabeça do Aranha no final?? De onde ele tirou aquela arma?

Patriotada amada

O efeito do atentado que destruiu as Torres Gêmeas em Nova York, em 2001, teve duas conseqüências no filme do aracnídeo: Primeiro, num acesso de puritanismo, foi recolhido o excelente teaser trailer (que sequer aparece no DVD) e depois os prédios foram apagados tanto nos cartazes como em cenas filmadas quando eles ainda estavam de pé. Esse bafafá todo rendeu uma publicidade gratuita sem tamanho, que aumentou ainda mais o interesse do público geral no filme e gerou boatos infundados de que haveriam cenas cortadas no filme passadas nos tais edifícios. Segundo: dentro do filme, o momento histórico se reflete na seqüência em que a população nova-iorquina investe contra o Duende e um cidadão exclama: "Mexeu com um, mexeu com todos nós!". Cena que insufla o povo a uma união meio que forçada aos olhos de quem não era americano naquele momento específico. Não precisava, mas também não chega a incomodar. Há também a famosa volta no mastro da bandeira, seqüência exibida a exaustão nos comerciais e que fez todo americano fragilizado correr para as salas de cinema fazer catarse através do filme. Mas podia ser pior. Lembra do final de Superman 2 (de Richard Lester - 1980), quando o Super voa sorridente com a bandeira americana? BRRRRR.....

Duende de Aquiles

Graças a Deus Willem Dafoe estava a postos para salvar a pátria. Se não fosse ele para segurar a batata quente, provavelmente estaríamos diante de um dos piores vilões adaptados das HQs para as telas. Sério! Ou aquela roupinha high tech cheia de firulas que não serviam para nada convenceu alguém? Com o tempo a gente acostuma e aceita. Mas é impossível negar que o Duende foi redesenhado para render brinquedos bacanas. É maravilhoso ver o Norman Osborn conversando com si mesmo diante do espelho ou sozinho. É triste ver Dafoe tendo que abrir os globos oculares da máscara para tentar dar um pouco de expressão ao seu personagem. Nas mãos de outro intérprete menos dotado a coisa certamente podia capengar. E olha que mesmo assim, a sensação de estar vendo um refugo de Power Rangers permanece. Mas como eu disse, a gente acostuma e aceita com o passar das reprises.

Saldo Positivo

Apesar dos seus revezes, Homem-Aranha é um bom filme. Daqueles bem divertidos, feitos com um carinho e respeito pelo original que transparecem a cada cena. E foi um passo além no caminho que sedimentou os filmes de HQ como gênero lucrativo no cinema nos últimos anos. Sem falar que contribuiu e muito no amadurecimento desse tipo de produção, abrindo caminho para X-Men 2 e Hulk, dois exemplares recentes de que, nas telas, quando a coisa é levada a sério, quadrinhos de super-heróis têm tudo para render grandes filmes.

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