Como a Capitã Marvel se tornou o maior ícone feminista nos quadrinhos de super-herói

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Como a Capitã Marvel se tornou o maior ícone feminista nos quadrinhos de super-herói

Kelly Sue DeConnick deixa a série, depois de três anos, com um alicerce pronto para a adaptação ao cinema

28.09.2015, às 19H23.
Atualizada em 25.01.2019, ÀS 16H52

Na semana passada, a Marvel Comics publicou a última edição da minissérie Captain Marvel and the Carol Corps, e com isso encerrou a fase da roteirista Kelly Sue DeConnick à frente das histórias da Capitã Marvel, iniciada em julho de 2012. Nesses três anos, em que Carol Danvers deixou a identidade de Ms. Marvel e se tornou a Capitã, DeConnick ganhou notoriedade como uma voz de expressão nos quadrinhos americanos - e fez da personagem a principal figura de afirmação feminina de sua geração.

Desde sua origem, em 1968, no auge da segunda onda do movimento feminista, Carol Danvers foi concebida pelo roteirista Roy Thomas e pelo desenhista Gene Colan para espelhar nas HQs os esforços de mulheres que batalhavam para se inserir no mercado de trabalho. Na juventude Carol sonhava em pilotar, apesar da resistência de seu pai, e por mérito próprio conseguiu um posto numa das instituições mais machistas do país, a Força Aérea Americana. Mesmo quando ganhou os superpoderes kree de Mar-vell, o Capitão Marvel, e se tornou a Ms. Marvel em 1977, seu horizonte não mudou: para Carol Danvers o limite sempre foi o céu.

O que DeConnick fez ao assumir as histórias da personagem em 2012 foi tornar mais latente esse discurso e deixar clara a emancipação de Carol Danvers. Durante anos, a personagem viveu à sombra do seu "criador" - ela devia ao heroísmo de Mar-vell seus poderes e sob a alcunha de Ms. Marvel carregava o nome dele - e seu visual consagrado, musculosa, com máscara preta, botas e luvas pretas, e o laço amarrado na cintura, davam vazão a fantasias masculinas de masoquismo. No pacote da série Captain Marvel iniciada em julho daquele ano, quando Carol adotou o nome de guerra do falecido Mar-vell, vinha não só um visual menos masculinizado e um novo uniforme de corpo inteiro (e o laço da cintura começou, sutilmente, a cobrir também o bumbum de Carol) mas principalmente uma nova postura de independência.

É marcante o momento em Captain Marvel #1 - antes de Carol aceitar a sugestão do Capitão América de assumir para si o codinome de Capitã Marvel - em que ela lembra que se aposentou como coronel, e portanto é hierarquicamente superior a Steve Rogers nas forças armadas. Apesar da piada com a vitória das mulheres, DeConnick não constrói sua Carol como uma revanchista. Essa função cabe a Helen Cobb, pioneira entre as mulheres na Força Aérea, ídola de Carol na juventude e uma das grandes personagens criadas pela roteirista nessa fase.

O fato de DeConnick escolher, como primeiro arco de sua HQ, uma viagem no tempo que coloca Carol e Helen lado a lado num contexto de Segunda Guerra Mundial (a era do "we can do it!", marco do feminismo moderno, estampado já na capa de Captain Marvel #2), é bastante emblemático da separação que a autora procura fazer entre o revanchismo de Helen (descrita textualmente como uma "ameaça à masculinidade") e o heroísmo de Carol. Na relação de aprendizagem e rivalidade entre as duas, cujo clímax escancara o individualismo de Helen, a série estabelece o cenário não para uma vitória da mulher mas para uma convocação à irmandade.

Ao longo desses três anos, em que Captain Marvel nunca vendeu edições no mesmo nível dos blockbusters da editora, um pequeno culto se formou entre leitores e leitoras nos EUA, grupo que se autodenomina "Carol Corps" e frequenta Comic-Cons com cosplays da nova Capitã Marvel. Essa base de fãs responde, antes de mais nada, a uma estratégia de DeConnick de tornar Carol Danvers uma porta-voz de um grupo. Ainda no arco ambientado na Segunda Guerra, a Capitã Marvel lidera um pelotão de mulheres no front, e, entre outras coisas, ensina a elas a odiar não os homens mas o sistema ("o seu inimigo é a guerra", diz), num confronto oportunamente feito contra máquinas e não contra outros humanos.

Kelly Sue DeConnick não prima sempre pela sutileza; seu discurso afirmativo beirou o esquematismo em algumas edições, como quando Carol se alia à ex-Capitã Marvel Monica Rambeau (o acerto com o passado, de novo) e juntas formam basicamente um supersentai do feminismo para derrotar uma máquina (mais uma). De qualquer forma, as primeiras 17 edições dessa fase terminam coroando a nova postura da heroína como uma porta-bandeiras, inspirando crianças e adolescentes (o surgimento de Kamala Khan, a nova Ms. Marvel, é um grande legado involuntário da HQ). Desde sempre não há nada mais representativo do "sucesso" de um personagem da Marvel do que a cena, na edição 17, em que a população de Nova York se põe na linha de fogo para defender seu super-herói de preferência, e Carol Danvers fez por merecer.

O céu é o limite?

O grande salto que Kelly Sue DeConnick deu em seguida na série, ao levá-la para aventuras no espaço quando Captain Marvel teve sua numeração zerada em março de 2014, foi transformar em conflito (e oportunidade de humor, com frequência) o fato de Carol Danvers, feminista plena, de repente se ver diante das dores da maternidade - inscritas não de forma literal, mas traduzidas em situações variadas como a responsabilidade de ajudar uma civilização alienígena "órfã" ou a saudade das pessoas que dependiam dela na Terra. É provável que a Marvel tenha obrigado DeConnick a integrar Carol a personagens dos Guardiões da Galáxia por conta do filme da equipe espacial, lançado ano passado, mas o fato é que a roteirista tira o melhor dessa premissa: o que resta quando o limite, o céu, já ficou para trás?

Embora o aspecto cômico tenha ditado esse arco feito com piratas, gatos e aliens tentaculares - para DeConnick o desconhecido é sinônimo de absurdo - não é difícil ver a Capitã Marvel usando a exploração espacial (terreno de fantasias masculinas na ficção científica, com suas mulheres-robôs e seus foguetes fálicos) para reafirmar a sua identidade. Há muita demonstração de girl power nas séries de Mulher-Hulk, Mulher-Gato, Batgirl, Mulher-Maravilha evidentemente, mas dificilmente uma HQ de super-heroínas fica tão fodona quanto o momento em que Carol usa sua própria nave para dar um murro na nave pirata, com a gravidade zero deixando seu cabelo todo de pé, como se ela estrelasse um comercial anarquista de xampu - seu rosto aceso pelo fogo, vermelho de vitória.

Se Carol Danvers por fim abandona o espaço - sendo a solidão o domínio que restou ao macho na cultura pop, com seus pistoleiros sem nome e cavaleiros de poucas palavras - é por que provou o que precisava. A despedida emocionada na volta à Terra (cujo fundo autobiográfico DeConnick reconhece em uma tocante carta ao leitor no fim da edição 15) representa o fim de um ciclo que, no mercado, é visto como um exemplar reposicionamento de marca que a Marvel logrou com a personagem, apesar das baixas vendas - tanto que Carol Danvers migrará para o cinema não como Ms. Marvel, codinome que carregou consigo por mais de 30 anos, mas como essa nova Capitã.

"Mesmo se ela morrer, tudo terá valido a pena", diz o texto metalinguístico que semana passada encerrou a quarta e última edição de Captain Marvel and the Carol Corps, minissérie em que DeConnick sintetizou de forma lúdica os temas desses três anos (inclusive com os machos-alfa da tropa de Thors retratados não como vilões mas como sintoma de um sistema injusto). Quando Tara Butters e Michele Fazekas - dupla conhecida por produzir a série de TV Agent Carter - começarem a escrever a nova série Captain Marvel em março de 2016, a super-heroína provavelmente não vai virar, de repente, um sucesso de vendas para a editora, mesmo porque já ficou claro que sua batalha, como a do feminismo, se faz num dia depois do outro. Mas suas (novas) raízes estão criadas.

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