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HQ: <i>Aninha, bonita e gostosa</i>

HQ: <i>Aninha, bonita e gostosa</i>

18.06.2004, às 00H00.
Atualizada em 02.11.2016, ÀS 03H13

A primeira Aninha a ficar famosa nos quadrinhos tinha seis anos, era órfã, possuía olhos que pareciam duas contas de vidro e cabelos encaracolados, vivia sempre acompanhada de um cachorrinho sem graça chamado Sandy e representou talvez o máximo de conservadorismo que as histórias em quadrinhos puderam um dia refletir. Sustentada por um magnata da indústria de guerra que enfrentava greves mandando assassinar os seus cabeças - Daddy Warbucks -, a pequena órfã personificava o apoio à plutocracia como modelo ideal de sociedade. Nunca cresceu, permanecendo por mais de cinqüenta anos congelada no tempo, vagando pelas regiões inóspitas dos Estados Unidos, sendo raptada por bandoleiros - normalmente ligados a etnias diversas ou a classes pouco privilegiadas -, e esperando que seu papai retornasse de uma de suas intermináveis viagens para salvá-la dos perigos, com os quais parecia ter contrato de exclusividade.

Aparecendo em 1924, Little Orphan Annie (Aninha, a Pequena Órfã), a lacrimosa criação de Harold Gray, talvez por personificar a mentalidade tacanha e retrógrada que dominava (e domina ainda) boa parte da população de seu país, foi um dos grandes sucessos dos quadrinhos, sendo desenhada por seu autor até a morte deste, em 1968, e depois tendo sua continuação por outras mãos. Virou até musical na Broadway e produção cinematográfica.

A segunda Aninha mais famosa nos quadrinhos - a que nos interessa mais de perto -, felizmente cresceu e, ao fazer isso, adquiriu dois olhos azuis bem expressivos e dois belíssimos e bem avantajados seios, que nunca teve pejo algum em deixar à mostra nas suas histórias. Sempre em trajes sumários, mergulhada no mundo da televisão, da propaganda e do consumo, Little Annie Fanny surgiu em outubro de 1962 na revista Playboy e representou o outro lado da mentalidade norte-americana, a visão liberal de mundo, até hoje também defendida por uma parte da população daquele país. Idealizada por Harvey Kurtzman (o grande criador da revista Mad) e com concepção visual de Will Elder, a personagem transformou-se em um sucesso absoluto da Playboy, ali permanecendo durante 26 anos ininterruptos (dez anos depois, em 1998, foi retomada pela publicação, embora com outros autores).

As relações entre as duas Aninhas ficam aparentes a partir do próprio título das séries, que têm a mesma sonoridade e o mesmo número de sílabas em inglês, evidenciando a intencionalidade de Kurtzman em buscar a paródia como forma privilegiada de manifestação artística. Tal como a desafortunada órfã de Gray, a personagem das páginas da Playboy também possui o seu papaizinho protetor - no caso, Daddy Bigbucks, um milionário inescrupuloso que a cobre de presentes -, e apresenta um panorama dos Estados Unidos de seu tempo. Contrariamente à jovem órfã, no entanto, a Aninha de Kurtzman e Elder viaja predominantemente pelo ambiente da cultura pop, ancorando suas histórias no espaço da comunicação de massa, do mundo do espetáculo e da propaganda, além de enfocar aspectos marcantes de seu tempo. Em suas histórias, podem ser encontradas, de forma recorrente, referências caricaturais a políticos norte-americanos (como John Kennedy, Richard Nixon e J. Edgar Hoover), artistas do cinema (como Marcello Mastroianni, Sofia Loren e Anita Ekberg) e da televisão (como Richard Chamberlain e Robert Stack), cantores (como Frank Sinatra), etc., compondo um mosaico de mais de duas décadas da história contemporânea.

Um sucesso na Playboy norte-americana, a personagem só teve uma breve aparição na edição brasileira da revista, sendo praticamente inédita no país. Felizmente, essa falha é agora preenchida em uma edição especial em vários volumes publicada pela editora Abril de São Paulo, cujo volume inicial já se encontra disponível em bancas e livrarias. Aqui batizada como Aninha, bonita e gostosa, a personagem chega ao país com toda a pujança da publicação original, em cores bem definidas, desenhos primorosos e detalhados, numa edição caprichada que apresenta ao público brasileiro suas 22 primeiras histórias, publicadas originalmente desde outubro de 1962 a outubro de 1965, englobando uma das épocas de maior criatividade da dupla de autores.

A edição brasileira representa a metade do primeiro volume da edição norte-americana publicada pela Dark Horse Comics em 2001, que abrangia histórias de 1962 a 1970 e que seria seguido por um segundo volume, com as episódios referentes ao período de 1971 a 1988. Isso leva a crer que a editora previu a disponibilidade da obra no país em quatro volumes, repetindo iniciativa semelhante feita com as criações de Carl Barks para as personagens Disney.

No caso de Little Annie Fanny, a opção por dar um título em português à publicação, embora perdendo com isso a sonoridade do original, parece ter sido bastante acertada, pois traz à lembrança dos leitores a velha canção de Rita Lee, tão cara a muitos deles. Entre estes, o público contemporâneo à série - principalmente aqueles nascidos na década de 50 -, poderá se refestelar com as diversas referências a elementos que povoaram sua adolescência e início da idade adulta, como as drogas psicodélicas, a revolução sexual, o rock and roll, o cinema italiano, a arte moderna e diversas séries de televisão ainda vistas em branco e preto, como Dr. Kildare, Ben Casey e Os Intocáveis, além de referências a acontecimentos emblemáticos da época, como a construção do muro de Berlin, a crise dos mísseis em Cuba, os movimentos pelos direitos civis e libertação feminina, a corrida espacial, entre outros. E, entre tudo isso, deliciar-se com a figura de Annie, na magistral pena de Will Elder e seus assistentes (como Frank Frazetta, Russ Heath, Al Jaffee, Arnold Roth, Paul Crocker, Jr., Larry Siegel e Jack Davis), uma mistura de Marilyn Monroe e Brigitte Bardot. Os mais novos, por sua vez, poderão saborear um pouco do clima daqueles tempos fascinantes, embora sob certos aspectos aterradores (afinal, era a época de aparecimento e endurecimento da ditadura militar por aqui e da Guerra Fria pelo mundo inteiro...).

A edição em português contém ainda uma introdução de Denis Kitchen e notas explicativas sobre cada uma das histórias, que apenas agregam valor ao produto e o tornam ainda mais imprescindível a todos os admiradores dos quadrinhos.

Aninha, Bonita e Gostosa, vol. 1, publicado pela Editora Abril em formato magazine, tem 114 páginas coloridas e R$ 19.95.

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