HQ/Livros

Entrevista

Howard Chaykin comenta a vantagem e o prejuízo de ser um marginal dos quadrinhos

"O desespero é ver artistas sendo louvados por técnicas ou conceitos que eu criei", diz o desenhista e roteirista

15.09.2015, às 18H39.
Atualizada em 08.11.2016, ÀS 09H05

Mito das HQs, capaz de transgredir a moral americana com obras cultuadas como Black Kiss e American Flagg!, Howard Chaykin vai interromper a produção de seus dois novos trabalhos, Midnight of the Soul e Sunshine Patriots, para matar a saudade de seus fãs brasileiros no Festival Internacional de Quadrinhos. Chaykin será a maior estrela da nova edição do FIQ, que será realizado de 11 a 15 de novembro na Serraria Souza Pinto, em Belo Horizonte.

None

Judeu nascido em Newark, Nova Jersey, há 64 anos, o desenhista e roteirista é considerado um precursor da estética realista que revelou nomes como Frank Miller, mas, por um estandarte da rebeldia, Chaykin nunca obteve a notoriedade merecida, embora tenha mobilizado uma legião de fãs desenhando tramas do Sombra e do Falcão Negro nos anos 1980. Sua entrada no submundo homoerótico com Black Kiss é um marco do inconformismo, e nesta entrevista ao Omelete, por email, o quadrinista fala dessa sua obra, de sexo, drogas e super-heróis.

Como anda seu trabalho nas HQs hoje?

HOWARD CHAYKIN - A maior parte do meu trabalho com quadrinhos nos últimos anos foi na Image, uma editora que virou um céu de brigadeiro para quem sonha trabalhar de forma independente, sendo dono de seu próprio material. Dito isso, estou trabalhando neste momento em uma minissérie de cinco partes para a Image chamada Midnight of the Soul. É uma trama sobre um veterano (veja a imagem abaixo) da Segunda Guerra Mundial, cheio de traumas, que sofre uma violenta experiência de transformação. Tenho feito ainda uma série de 12 capítulos para a revista Dark Horse Presents chamada Sunshine Patriots, na qual abordo as aventuras de dois integrantes do Primeiro Regimento da Cavalaria Voluntária do Presidente Roosevelt. A dupla chega a Hollywood em 1913 e lá eles vão trabalhar como pistoleiros de aluguel dos estúdios num embate contra a máfia.

None

Qual foi o impacto de Black Kiss, com sua abordagem sobre o univero LGBT, sobre a sociedade americana?

Na indústria das HQs, essa série [publicada pela Vortex Comics em 12 números de junho de 1988 a julho de 1989] embaraçou um contingente que gosta de pinups mas finge ignorar a pornografia. Por isso, muitos críticos preferiram ignorar Black Kiss a reagir a ela com seriedade. Mesmo na comunidade gay, não sei o quanto de celeuma o meu gibi causou. Talvez pense assim porque eu sempre fui descrito como sendo um sujeito alternativo no mercado quadrinístico. As pessoas enxergam em mim um Van Morrison dos quadrinhos: uma figura cult, referencial como forma e traço, mas desconhecido para mais da metade da massa de entusiastas de HQs do mundo. Isso sempre foi para mim uma forma de invisibilidade ao mesmo tempo desesperadora e recompensadora. O desespero vem do fato de ver artistas sendo laureados ou louvados por técnicas ou conceitos que EU criei. A recompensa reside no fato de que os conservadores de hoje me ignoram.

O que o travesti Dagmar Laine, o sádico protagonista de Black Kiss, representa hoje como um símbolo sexual?

Dagmar (veja abaixo) foi baseada em uma série de travestis que eu conheci nos anos 1960 e 70, e a maioria deles já deve ter morrido. Alguns foram meus colegas no primeiro estúdio de desenho onde trabalhei. Outros eram colegas que fiz em diferentes comunidades: atores, artistas performáticos, michês. Nos anos que antecederam o vírus da AIDS, gays, transexuais e héteros frequentavam as mesmas festas. E, naquela época, eu era um ser notívago. Passei quase 25 anos bêbado e chapado. Foram anos loucos, mas, neles, eu aprendi muito sobre respeito. Por isso, é desanimador ver que em alguns lugares do meu país as leis contra o preconceito ainda sejam tão lentas.

Há mais de 15 anos, desde fenômenos como as franquias Homem-Aranha, X-Men e Batman nas telonas, o cinema criou uma dependência quase química das histórias em quadrinhos de super-herói, terreno onde o senhor também militou, em títulos como O Sombra e Falcão Negro. Como o senhor encara essa dependência?

None

Sou um cinéfilo com interesse por todos os tipos de filmes. Minha mulher e eu vamos ao cinema pelo menos duas vezes a cada fim de semana, o que nos dá um cardápio bem variado de atrações. Assim sendo, minha impressão sobre os filmes de super-heróis é neutra, variando caso a caso. Gostei muito de alguns, saí aborrecido de um ou outro e fiquei surpresa com muitos. Steven Spielberg outro dia disse algo bem lúcido que eu gostaria de parafrasear: "Os filmes de super-herói vão tomar o mesmo rumo dos faroestes: o esgotamento pela repetição".

Falando de heróis em outras mídias, o senhor foi um dos roteiristas da série The Flash, nos anos 1990, e trabalhou em outros seriados como Viper e Earth: Final Conflict. O que a TV representa para a sua carreira?

Eu não chamaria a minha carreira televisiva de vasta. Eu gastei 12 anos da minha vida como colaborador em séries de terceira (quando muito) às quais eu jamais assistiria se não tivesse um contrato com elas. E fui parar num gueto de dramaturgia que acreditavam ser mais compatível com a minha trajetória como quadrinista. Eu já era um senhor quando embarquei nessa. Se eu tivesse começado na TV mais moço, com uns 30 ou 40, talvez tivesse feito escolhas distintas. Eu nunca consegui da TV nada além de um contracheque e, hoje, de uma aposentadoria, embora seja muito agradecido pelos dois. Mesmo assim, essa experiência televisiva teve um efeito profundo e muito positivo na minha carreira como produtor de quadrinhos. Eu gosto dessa expressão "produtor de quadrinhos" porque ela me dá um senso de liberdade artística e eu considero que pelo menos 50% das pessoas que vivem de quadrinhos são artistas com "A" maiúsculo.

Atualmente, sobretudo após o sucesso do Demolidor da Netflix, a relação entre a TV e as HQs anda tão forte quanto a aproximação entre os quadrinhos e o cinema?

Atualmente, os agentes, empresários e toda a sorte de representantes legais de homens e mulheres ligados aos quadrinhos ainda cometem um desserviço: eles acreditam que os roteiristas são a única mão de obra digna de exportação na nossa indústria. Mas, como a televisão está vivendo uma Era de Ouro, esse filão do mercado audiovisual virou o pote de ouro no fim do arco-íris. Não sei como as coisas funcionam em outros países, mas, hoje, a televisão é o setor da arte onde o dinheiro está. Portanto, muitos escritores acreditam que a televisão é o caminho para quem quer fama e fortuna. Por mim, que esses caras se danem! Que essa lógica se dane!

None

O senhor é o criador de uma das séries mais cultuadas da história dos quadrinhos: American Flagg!. Há planos para transformá-la em filme?

Eu me mudei para a Califórnia, há quase duas décadas, em função das atenções que American Flagg! despertou em Hollywood. Infelizmente, Flagg acabou sendo canibalizado em Hollywood e nunca foi adaptado. Ainda há esperança de que ele vire filme. Sempre há, pelo menos para um romântico como eu, com expectativas limitadas em muitas frentes.

Como foi a sua recente experiência na Marvel, na HQ The Avengers, desenhando Os Vingadores numa formação pós-Segunda Guerra?

Eu encaro qualquer trabalho, não importa qual seja a editora, com o mesmo nível de compromisso e profissionalismo com que encaro projetos autorais. E neste caso, não foi diferente.

Quais são os quadrinistas que o senhor admira mais na atualidade?

Em relação a desenhistas, sou um fã ardoroso de Eduardo Risso, David Aja, Leinil Yu, Jose Garcia Lopez, e muitos outros, o que levaria muito tempo enumerando todos. E eu sigo admirando Alex Toth, Ferdinand Tacconi, Harvey Kurtzman, Wallace Wood e outros associados às chamadas Era de Ouro e Era de Prata dos quadrinhos. Em relação aos roteiristas, meus sentimentos sobre gente que escreve diz respeito mais àqueles que são mais parceiros dos desenhistas. Essa parceria tem a ver com a qualidade do que eles entregam aos ilustradores. Não penso muito sobre a natureza dos scripts porque não tenho interesse profundo nos assuntos tratados pelas HQs.

O que o senhor conhece sobre quadrinhos brasileiros?

Nada, o que me envergonha muito. Minha última passagem pelo Brasil foi há 20 anos e, na época, o que me pareceu foi uma indústria muito baseada em revistas para crianças. E senti também que havia muita gente talentosa, mais afeita ao tipo de HQ que eu faço, tentando conseguir trabalhos na Marvel e na DC. Mas eu não sei como anda a indústria brasileira hoje.

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.