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Artigo

Tintim | 85 ANOS

A história de Georges Remi e sua criação imortal As Aventuras de Tintim

10.01.2014, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H14

Criada em 10 de janeiro de 1929, a HQ As Aventuras de Tintim completa 85 anos!

Na história dos quadrinhos mundiais, poucos autores conseguiram atingir tão profundamente seu público leitor como o belga Georges Remi, criador da série As Aventuras de Tintim. A penetração de seu personagem mais conhecido, o Tintim, no inconsciente coletivo dos falantes de língua francesa - mas não somente entre eles - é algo que continua sendo objeto de estudos 30 anos depois do falecimento do autor. Literalmente, bem mais do que uma dezena de livros foi escrita sobre o tema, enfocando tanto sua significativa obra quadrinhística como a personalidade de seu criador, sob os mais diversos aspectos: seu processo de elaboração artística, sua relação com as personagens, o impacto psicológico de sua vida pessoal em sua obra, etc. Tudo isso, para dizer o mínimo, evidencia o fascínio que o personagem conseguiu despertar em seus leitores, um fascínio que parece ainda longe de terminar quando considerado o interesse que seu trabalho continua despertando no mundo inteiro.

Bianca Castafiore

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Bianca Castafiore

Tintim

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Hergé

Dupont e Dupond

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Dupont e Dupond

Tintim

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Tintim e os Pícaros

Tintim

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Os Charutos do Faraó

Tintim

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Tintim no País dos Sovietes

Tintim

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Capitão Haddock

Tintim

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Tintim e Milu

Tintim

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Voo 714 para Sydney

Tintim

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Viajando à Lua

Nascido em 1907, o pequeno Georges, quando criança, recebia dos pais papel e lápis como forma de mantê-lo ocupado quando estes recebiam visitas, de modo a conseguirem um pouco de sossego daquele menino inquieto. Na infância e depois adolescente, enchia todo o espaço livre de seus cadernos de escola com figuras, desenhos, pequenas histórias que certamente mostrava para seus colegas e amigos e que depois invariavelmente acabaram perdidos. Naquela época, provavelmente nem sequer imaginava que, um dia, iria se dedicar ao desenho como profissão, transformando-se em um dos artistas mais consagrados de sua geração. Nem, tampouco, havia assumido ainda o pseudônimo Hergé, a transcrição literal das iniciais de Remi, Georges, com o qual se tornaria mundialmente conhecido.

O início de sua atuação como desenhista deu-se no seio da Federação de Escoteiros Católicos da Bélgica, na qual ingressou quando criança e que representou seu maior interesse enquanto crescia; nesse ambiente, também, teve a possibilidade de empreender várias viagens, conhecendo países como Espanha, Áustria, Suíça e Itália, colhendo informações que depois utilizaria em suas histórias em quadrinhos. Sua primeira personagem fixa, como não podia deixar de ser, nasceu ligada ao escotismo, aparecendo em 1926 na revista Le boy-scout (depois, Le boy-scout belge): Totor, C. P. des Hannetons. Nessa mesma época, Hergé já havia começado a colaborar no jornal Le XXe Siècle, dirigido com mão de ferro pelo padre Norbert Wallez, com uma nítida linha clerical e nacionalista. Nesse jornal, depois de cumprir o serviço militar, o autor assumiu várias funções, de fotógrafo a ilustrador de páginas especiais, aos poucos se envolvendo em todas as atividades do periódico e tornando-se homem de confiança de seu diretor. Assim, quando este pensou em ampliar o número de leitores pelo acréscimo de um suplemento juvenil, foi a Hergé que encarregou de dirigi-lo. Desta forma, fruto de um esforço quase individual daquele jovem de pouco mais de 21 anos, surgiu, no início de novembro de 1928, o primeiro número de Le petit vingtième.

Em seus primeiros dias de atuação no jornal, Hergé ilustrava histórias escritas por outros autores, mas rapidamente se cansou disso e optou por criar um personagem próprio. Buscando inspiração no escoteiro Totor, Hergé modificou-lhe um pouco o nome, deu-lhe uma profissão - a de jornalista -, acrescentou-lhe um topete como característica distintiva e presenteou-o com um companheiro canino, um fox-terrier chamado Milou (em português, Milu). E assim, nas páginas do número 11 do Le petit vingtième, nascia, em 10 de janeiro de 1929 o jovem aventureiro Tintim, cujas peripécias viriam, nos anos seguintes, a se tornar a coqueluche de toda a Europa.

Desde o seu início, Tintim caracterizou-se como um ser inquieto e talvez aí resida boa parcela de seu sucesso. Já em sua primeira aventura, Tintin au pays des soviets, percorre as estepes do grande país vermelho e adquire grande popularidade. É o que, surpreso, descobre o autor quando, ao terminar a história, em 1930, num golpe publicitário pouco comum à época, resolve simular o retorno do herói a seu país: uma multidão de entusiastas estava esperando por ele na Gare du Nord de Bruxelas, para recepcioná-lo juntamente com o menino que havia contratado para se fazer passar por seu pequeno herói. Daí em diante, a popularidade da personagem apenas cresceu, à medida em que as histórias se sucediam: Tintin au Congo (1931), Tintin en Amérique (1932), Les cigares du pharaon (1934), Le lótus bleu (1936), L'oreille cassée (1937), L'ile noire (1938), Le sceptre d´Ottokar (1939), Le crabe aux pinces d?or (1941), l'etoile mystérieuse (1942), Le secret de la licorne (As Aventuras de Tintim: O Segredo do Licorne, adaptado ao cinema por Steven Spielberg, 1943), Le trésor de Rackham Le Rouge (1944), Les sept boules de cristal (1948), Le temple du soleil (1949), Tintin au pays de l´or noir (1950), Ojectif Lune (1953), On a marche sur la Lune (1954), L'affaire Tournesol (1956), Coke en Stock (1958), Tintin au Tibet (1960), Les bijoux de la Castafiore (1963), Vol 714 pour Sydney (1968), Tintin et les pícaros (1979), Tintin et l'Alph-Art (obra póstuma, incompleta).

Em poucas histórias Tintim permaneceu em um único lugar, buscando sempre outras terras e outros horizontes. É certo que, no início se sua produção, essa relação com outros países era excessivamente marcada por uma visão eurocêntrica sobre povos e regiões menos civilizadas, fruto ainda do pouco conhecimento do autor sobre outros povos e de sua inexperiência como narrador. Tanto é assim que seu primeiro álbum, Tintin aux pays des soviets, foi posteriormente execrado por ele, por se caracterizar como um manifesto de reprovação pública à União Soviética e seu regime político, constituindo uma obra repleta de clichês e portando uma virulenta visão sobre a realidade da sociedade russa. Suas obras seguintes, Tintin au Congo, Tintin en Amerique e Les cigares du pharaon também padecem do mesmo mal, embora um pouco suavizado, neles prevalecendo a visão colonialista da então potência européia. A partir da quinta aventura do herói, no entanto, as coisas começam a mudar para melhor. Aos poucos, Hergé deixa de lado a visão estereotipada que dominou suas primeiras obras e passa a dedicar maior atenção à elaboração das histórias e à pesquisa aprofundada sobre povos e lugares onde se situariam as Aventuras de Tintim.

As razões dessa mudança parecem um pouco fundadas no terreno da lenda, uma lenda disseminada pelo próprio autor em suas muitas entrevistas. Segundo ele, ao anunciar o futuro lançamento de Le lótus bleu, recebeu de um sacerdote católico, o Padre Gosset, capelão da Universidade de Louvain, uma carta na qual este lhe dizia para ser cuidadoso nas informações que incorporava sobre a China em seu trabalho, aconselhando-o a fazer uma pesquisa sobre o país. Por intermédio do Padre Gosset, Hergé entrou em contato com Tchang Tchong Jen, que naquela época era estudante na Academia de Belas Artes de Brussells. A simpatia mútua ajudou o desenhista belga a entender, por meio das intermináveis discussões que tiveram, as características peculiares e a incomparável riqueza da civilização chinesa, algo que ele sequer imaginava à época. A influência desse encontro em seu trabalho foi fartamente reconhecida por Hergé em seu depoimento ao pesquisador Numa Sadoul, como demonstra a citação a seguir: "Foi portanto no momento de Lótus Bleu que eu descobri um mundo novo. Para mim, assim como para todos os outros, a China era, com efeito, povoada por vagas ?humanidades? de olhos cerrados, de pessoas muito cruéis que se alimentavam dos ninhos das andorinhas, portavam rabos de cavalo e atiravam as criancinhas nos rios... Eu havia sido influenciado pelas imagens das narrativas da guerra dos Boxers, onde a ênfase era sempre nas crueldades dos amarelos, e isso me havia marcado fortemente (...) Portanto, eu descobri uma nova civilização que ignorava completamente e, ao mesmo tempo, tomei consciência de uma espécie de responsabilidade. É a partir desse momento que eu comecei a pesquisar a documentação, a me interessar verdadeiramente pelos países aos quais enviava Tintim".

Outro índice da influência do jovem chinês no trabalho de Hergé está presente na própria obra: é dele o nome dado ao jovem que Tintim encontra em Le lótus bleu, que se tornará seu amigo, e a quem ele apenas reencontrará 24 anos depois, em Tintin au Tibete. De uma certa forma, a relação fictícia do protagonista com a personagem parodia o desencontro que na vida real cercou o relacionamento do quadrinhista ocidental com o artista asiático: perdendo o contato com Tchang quando este retornou a seu país, Hergé só o reencontraria pessoalmente em 1981, quando o primeiro retornou à Bélgica para uma visita que durou vários meses. Com Hergé, então, no auge de sua popularidade, o reencontro dos dois amigos foi cercado por intenso estardalhaço da imprensa e espontânea participação da população. À aterrissagem de seu avião, Tchang foi recebido como um verdadeiro herói popular, com direito a tapete vermelho e discursos de boas vindas, uma evidência palpável da extensão como Tintim e seu criador haviam arrebatado a imaginação de seus leitores.

O caminho da glória abriu-se para Hergé a cada nova aventura de seu pequeno herói. A partir de 1932, a coletânea das páginas impressas no Le petit vingtième passaram a ser publicadas em álbuns pela Editions Casterman, ampliando o espectro de distribuição e penetração das Aventuras de Tintim nos países de língua francesa e, posteriormente, no resto do mundo, em tiragens cada vez mais crescentes (atingindo um milhão de exemplares em 1960) e contínuas reedições (paulatinamente, a cada reedição, elementos novos eram acrescentados nos álbuns e estes redesenhados pelo autor e seus colaboradores, trazendo aos leitores uma produção muitas vezes totalmente rejuvenescida).

Em 1946, após algumas dificuldades sofridas por Hergé no pós-guerra, o Journal de Tintin, foi publicado na Bélgica pela Editions du Lombard, ao qual logo se seguiria uma edição francesa, pela Editions Dargaud, dois anos depois; nas duas edições dessa revista, floresceu a chamada Escola de Bruxelas de quadrinhos, na qual brilharam os nomes de Edgar-Pierre Jacobs (Blake et Mortimer), Paul Cuvelier (Corentin), Jacques Laudy (Hassan e Kadour), Jacques Martin (Alix) e Jean Graton (Michel Vaillant), entre outros.

Em 1947, Le crabe aux pinces d'or estreou no cinema, em uma produção canhestra realizada por Claude Misonne, mas somente a partir da década de 50 é que o pequeno jornalista ganhará as telas de cinema em grande estilo, quando Jean-Pierre Talbot o personifica no longa metragem Le mystère de la toison d?or, dirigido por Jean-Jacques Vierne e André Barret, ao qual se seguirá, em 1964, Tintin et les Oranges Bleues, realizado por Philippe Condroyer. Em 1959 inicia-se a produção de desenhos animados para a televisão; posteriormente, dois desenhos animados em longa metragem serão produzidos para as telas cinematográficas, Le temple du soleil (1969) e Tintin et le lac aux requins (1972).

O sucesso das aventuras do pequeno jornalista é inegável, mas as razões talvez não se devam tanto ao protagonista em si, mas, sim, ao ritmo que era aplicado pelo autor às aventuras e à pitoresca galeria de personagens que cercavam o herói. Em muitos momentos das aventuras, este é eclipsado por seus companheiros, tornando-se como que uma espécie de coadjuvante das gags e peripécias protagonizadas pelos demais. Isto é evidente a começar por seu acompanhante humano mais constante, o Capitão Haddock, que surge na aventura Le crabe aux pinces d?or, e que cativará os milhões de leitores de Tintim com sua série aparentemente interminável de impropérios, sua luta contra o álcool e suas pretensões em se tornar um lorde inglês. O mesmo brilho vai ser também encontrado nas outras personagens, tanto nos parceiros do herói como em seus adversários: o Professor Girassol, estereótipo do gênio desatento a pequenos detalhes e com problemas de audição; Bianca Castafiore, a simpática (e terrível) cantora de ópera; os amigos Dupont e Dupond, detetives trapalhões criados como sátira aos policiais ingleses; Tchang, o simpático chinesinho inspirado pelo amigo do autor; o importuno Séraphim Lampion, entusiasta de todos os esportes; o diabólico Rastapopoulos, principal inimigo de Tintim, juntamente com seu não menos ameaçador braço direito, Allan Thompson; e o General Alcazar, modelado nos ditadores latino-americanos, entre outros.

Todo esse universo de personagens dá à criação maior de Hergé um caráter híbrido, que representa talvez sua maior riqueza: ao mesmo tempo em que os desenhos tendem ao caricatural, todo o entorno das histórias é extremamente realista - principalmente a partir de Le lótus bleu -, pois o autor representa com exatidão o movimento dos corpos, peças de vestuário, aviões, automóveis, locais, etc., aos quais agrega uma história em que os elementos humorísticos se mesclam com temáticas sérias como a guerra, a escravidão, a amizade, a liberdade, a coragem, com uma magistral sutileza que apaixona leitores das mais variadas procedências.

Hergé faleceu em 1983, vítima de anemia e insuficiência pulmonar. Sua obra, no entanto, continua viva e pulsante, sem qualquer nuvem que possa lhe toldar o brilho.

Leia mais sobre As Aventuras de Tintim

Leituras recomendadas:
BOURDIL, Pierre-Yves. Hergé. Bruxelles : Labor, 1990.
LE MONDE DE TINTIN. [site] Disponível em http://www.le-ouaib.net/tintin/
PEETERS, Benoit. Tintin and the world of Hergé: an illustrated history. Boston : Bulfinch Press, 1992.
SADOUL, Numa. Tintin et moi: entretiens avec Hergé. Champs-Flammarion, c2000.
TISSERON, Serge. Tintin et les secrets de famille. Paris : Aubier, c1992

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