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100 anos de Will Eisner | Vida, obra e influência do mais importante autor de HQs

O criador de Spirit moldou o que conhecemos como quadrinhos ao longo do século 20

06.03.2017, às 12H55.

Hoje, Will Eisner completaria 100 anos. Dizer que ele influenciou uma geração de quadrinistas é um erro. Ele influenciou todos os quadrinistas, tanto os seus contemporâneos quanto as gerações que vieram depois, numa carreira sem comparações.

O imigrante

Filho de pai austríaco que fugiu da Primeira Guerra Mundial e de mãe romena, William Erwin Eisner foi o primeiro de três filhos. A família estava sempre de mudança, apertada para pagar o aluguel em Nova York com os ganhos do pai, que pintava painéis de fundo para peças de teatro. Aos 13 anos - no início da Grande Depressão econômica dos EUA - Will teve que assumir as contas e virar "o homem da casa".

Eisner participou ativamente da explosão das revistas em quadrinhos nos anos 1930. Sentiu na pele a perseguição aos gibis nos anos 1950. Ajudou o exército dos EUA - com quadrinhos - ao longo de três guerras. Ajudou as "graphic novels" a ganhar seu espaço nas livrarias. Formou e continua formando quadrinistas com suas aulas e livros. Ele deu seu nome a um prêmio! E, nesses anos, revolucionou o jeito de contar histórias em quadrinhos.

Bob Kane e Stan Lee

A DeWitt Clinton High School, um dos colégios de meninos do Brooklyn, tinha professores muito bons - e oficinas de artes que deviam ser espetaculares. O roteirista de cinema Paddy Chayefsky, o estilista Ralph Lauren, o jazzista Fats Waller e o ator Burt Lancaster formaram-se lá. E ninguém menos que Stan Lee e os dois criadores de Batman, Bob Kane e Bill Finger, concluíram o ensino médio na Clinton. Will Eisner viveu e aprendeu muito nesse ambiente na sua adolescência. Mas rodou em geometria no último ano e nunca se formou.

Na retrospectiva abaixo, veja alguns dos pontos mais importantes na carreira do mestre centenário - e depoimentos de quem o conheceu.

Syndication

Recém saído do colégio, Eisner armou uma parceria com o editor Jerry Iger que renderia muitos frutos. Depois de colaborarem em uma revista, os dois fundaram a famosa Syndicated Features Corporation - mais conhecida como Estúdio Eisner & Iger. Era 1936, as revistas em quadrinhos estavam criando milionários e alguém tinha que abastecer os gibis com histórias. O Eisner & Iger tinha as principais editoras de Nova York como clientes.

"Ele deu cérebro às HQs"

A frase acima é de Alan Moore, que estava falando não só de Eisner, mas de The Spirit. A grande sacada da série era contar histórias envolventes - assassinatos misteriosos, damas fatais, viagens a locais exóticos - com narrativa experimental. Eisner escolhia dar ângulos às cenas que nunca se vira em HQ, fazia seus personagens atuarem como no teatro, compunha as páginas como se fossem cartazes. Ele inventou a splash page: a página de abertura com uma cena ou um único e potente quadro, que dá o tom da história, comum até hoje no quadrinho americano.

Patrão de Jack Kirby

A fila de autores que se vê nos créditos de gibis hoje em dia - roteirista, desenhista, arte-finalista, colorista, letreirista - foi inventada em estúdios como o Eisner & Iger. A folha de desenho literalmente passava de prancheta em prancheta, etapa por etapa. Nas pranchetas sob supervisão de Eisner, trabalharam nomes como George Tuska, Lou Fine, Al Jaffee e, em um de seus primeiros empregos, Jack Kirby e Joe Kubert. O próprio Eisner conta esse período na sua graphic novel O Sonhador.

Um fã brasileiro

"Eu passei a separar (cortava com tesousa, cuidadosamente) as páginas em que o 'Espírito' aparecia, juntava umas seis ou sete aventuras de sete páginas e as costurava, com linha e agulha, num álbum artesanal. Fazia uma capa de cartolina para proteção e tinha, assim, uma revista só com histórias de Will Eisner, uns 20 anos antes que suas publicações começassem a ser editadas em belos álbuns de luxo", escreveu Maurício de Sousa logo após a morte de Eisner.  O criador da Turma da Mônica lia as histórias do "Espírito" na revista Gibi nos anos 40, e viria a tornar-se amigo do autor.

Quadrinhos na guerra

Os EUA entraram na Segunda Guerra Mundial em 1941. Eisner foi convocado na hora. Já com certa fama, bom de conversa e contatos, ele foi aproveitado pelos seus dons e não no front: começou a produzir tiras, cartuns e, por fim, uma revista que ensinava os soldados a não serem patetas como seu cabo trapalhão Joe Dope. Este primeiro contato com as Forças Armadas lhe renderia trabalho por décadas: faria quadrinhos para ensinar soldados a lidar com metralhadoras, tanques e outros equipamentos até os anos 1970, acompanhando também as guerras da Coreia e do Vietnã.

Seguindo o mercado

Falcão dos Sete Mares. Yarko, o Mágico. Sheena, a Rainha das Selvas. Histórias de detetive. Westerns. Piratas. Adaptações da literatura universal. O Estúdio Eisner & Iger produzia todo tipo de HQ, conforme o sucesso do mercado apontava um gênero ou outro. Eisner tinha que usar pseudônimos para não gastar seu nome. E se meteu em roubadas: a Fox Publications encomendou um super-herói, Wonder Man, que tinha que ser igual ao sucesso Superman. A editora foi processada por plágio e Eisner teve que depor em tribunal. Mas as roubadas e a variedade de projetos lhe renderam aprendizado.

O fim das HQs?

Nos anos 1950, a sociedade norte-americana voltou-se contra as revistas em quadrinhos e disse que eles deturpavam a juventude. Eisner, mesmo apaixonado pela mídia, achou que a situação só ia piorar. Encerrou The Spirit - que só ficou melhor nos doze anos de publicação, com colaborações de Jules Feiffer e outros autores - em 1952 e foi dar atenção a seus contratos com o exército e outros clientes.

Spirit, desafio ao mercado

Eisner, por encomenda de um cliente, criou os suplementos dominicais de HQ nos EUA: cadernos coloridos com histórias de poucas páginas, encartados em vários jornais. Eisner inventou The Spirit como principal atração do suplemento. Os jornais queriam super-heróis, mas ele veio com uma espécie de detetive. Queriam um uniforme de super-herói - Eisner lhe deu um sobretudo. Queriam identidade secreta, então Eisner cedeu e topou uma pequena máscara. O cliente queria ficar com os direitos, mas Eisner bateu o pé - e fui um dos primeiros quadrinistas a ser dono de sua criação.

Radicais

"Aquela geração de jovens quadrinistas nova-iorquinos judeus intelectualizados de esquerda ('éramos radicais', disse-me Ann Eisner em um almoço), que era o que havia de mais brilhante no mundo dos gibis, foi praticamente expulsa pelas circunstâncias. Will Eisner estava entre eles, mas o grupo também incluía, por exemplo, Harvey Kurtzman e Jules Feiffer. Restaram, apenas, aqueles que, como Jack Kirby, não sabiam fazer outra coisa, ou aqueles que, como Stan Lee, não sabiam fazer coisa alguma" - Rogério de Campos, editor e crítico

Eisner Awards

Em 1988, em busca de um nome que sustentasse o prêmio da San Diego Comic-Con, os organizadores resolveram que dificilmente algum quadrinista ia se opor - muito pelo contrário - a receber um troféu com o nome de Will Eisner. E mais: das mãos do próprio Will Eisner. "Você não ganha o Oscar de um cara chamado Oscar", como muito autor já brincou. Já com 50 anos de carreira, o autor comparecia todo ano a San Diego para a entrega. Em algumas ocasiões, teve que dar troféus a si mesmo: Eisner ganhou quatro Eisners pelas suas publicações e, evidentemente, faz parte do Hall da Fama do prêmio.

Romances gráficos

Eisner levou quase 20 anos para reencontrar o ânimo com os quadrinhos. Estimulado pelo underground, resolveu que queria fazer HQs em forma de livro - publicadas por editoras de respeito, para vender em livrarias, compradas e lidas por adultos. Foi atrás das editoras com a obra que achou que pudesse atingir esse nível: "Um Contrato com Deus e Outras Histórias de Cortiço". E a apresentou em 1978 não como gibi, mas usando um termo que circulava entre os aficionados há uma década: "graphic novel". Foi o pontapé que rendeu as seções de quadrinhos nas livrarias de hoje.

Professor

Durante 20 anos, Eisner foi professor de quadrinhos na School of Visual Arts de Nova York, que prepara profissionais para os mercados de ilustração, design, cinema, animação e, claro, HQ. Hoje publisher da Marvel, Joe Quesada foi um de seus alunos. Indiretamente, porém, Eisner foi professor de milhares: suas aulas viraram os livros "Quadrinhos e Arte Sequencial", "Narrativas Gráficas" e "Expressive Anatomy for Comics and Narrative", até hoje entre as primeiras referências para quem quer pensar ou fazer HQ.

Documentários

Os brasileiros Marisa Furtado de Oliveira e Paulo Serran foram os primeiros a convidar Eisner a se apresentar às câmeras em um filme sobre sua carreira. Profissão Cartunista: Will Eisner está na íntegra no YouTube. Um outro documentário, Will Eisner: Portrait of a Sequential Artist, de Andrew W. Cooke e Jon B. Cooke, foi produzido após a morte do autor e fala de sua obra principalmente a partir de depoimentos de outros artistas. Além dos filmes, há duas biografias extensas sobre o autor: a de Michael Schumacher e a de Bob Andelman, sendo a última inédita no Brasil.

Reinventando a chuva

A chuva como recurso dramático é uma das coisas mais manjadas no audiovisual e nos quadrinhos. A chuva de Eisner, porém, é outra coisa. Um Contrato com Deus abre com seu personagem - um velho judeu que se sente traído pelo divino - andando cabisbaixo numa chuva que é ao mesmo tempo econômica no traço e torrencial. Os pingos delineiam as figuras e o cenário, mas apagam seus detalhes. Toda cena com chuva nas HQs deve muito - e muitas vezes faz homenagem direta - a Eisner. O quadrinista Harvey Kurtzman batizou essa chuva de "Eisnershpritz", misturando o nome do criador e uma palavra do iídiche.

Eisner e o Brasil

Eisner veio várias vezes ao Brasil, sobretudo para convenções e exposições. Uma de suas visitas mais marcantes foi à I Bienal Internacional de Quadrinhos do Rio de Janeiro, em 1991, quando deu um gostinho de Eisner Awards entregando o prêmio de melhor graphic novel ao jovem Lourenço Mutarelli. Em outra visita, assinou com spray um muro de São Paulo onde havia um desenho do Spirit. O americano também tinha relação de amizade com Ziraldo e Mauricio de Sousa, que o visitavam nos EUA. E Jô Soares, fã de Spirit, o recebeu para uma entrevista no seu talk show (tem no YouTube).

Histórias humanas

Apesar de conviver com super-heróis, aventureiros e militares, Eisner queria contar histórias sobre gente comum. Vida e Morte de Gerhard Shnobble foge do padrão - Shnobble é um homem que voa - mas é uma das HQs na qual mais se vê essa vontade do autor, ainda nos anos 1940. Das graphic novels em diante, ele dedicou-se aos dramas individuais e familiares, às cenas da cidade grande e à autobiografia (levemente disfarçada). Contrato com Deus, aliás, é parcialmente autobiográfica: Eisner discutiu sua religiosidade depois que sua filha, Alice, faleceu de leucemia aos 16 anos.

Presente

O crítico Heitor Pitombo estava na visita de Eisner em 1991: "Lembro de uma tarde em que eu, Marisa [Furtado de Oliveira], Will e sua esposa Ann demos uma fugida ao Dada Zen Bar, onde Marisa montara uma instalação. Em meio a histórias e cervejas, todos na mesa começaram a desenhar. Já um pouco alto, propus um negócio para lá de vantajoso para mim: 'Will, troca um desenho seu por um meu?'. O mestre aceitou com um sorriso e fui brindado com uma arte onde a sensual P'Gell, uma das mulheres fatais de The Spirit, se mostra incomodada com a maneira como biquinis eram vendidos em Copacabana".

Homenagens hoje

A New York Society of Illustrators acaba de abrir uma exposição de originais de Eisner. O Festival d'Angoulême teve uma exposição dedicada ao centenário, que continua aberta ao público. O Memorial do Holocausto em Paris também expõe páginas suas até outubro. Bibliotecas e universidades dos EUA e pelo mundo organizam debates e mostras para a Will Eisner Week, que acontece no mês de seu aniversário desde 2009. Para quem não está perto de um destes eventos, fica a recomendação no cartaz da Eisner Week: "Leia uma graphic novel". Não há homenagem melhor.

Biblioteca

O Edifício. A Força da Vida. Pessoas Invisíveis. Um Sinal do Espaço. Avenida Dropsie. Assunto de Família. O Último Dia no Vietnã. Pequenos Milagres. O Nome do Jogo. O Complô. As autobiografias Ao Coração da Tempestade e O Sonhador. Nos EUA, as  graphic novels estão em republicação constante e saem com um selinho de "Biblioteca Will Eisner", para encontrar novos leitores todos os dias. No Brasil, dois tijolões reúnem várias obras de Eisner sob a mesma capa: Nova York, a Vida na Grande Cidade (Companhia das Letras) e Vida, em Quadrinhos (Criativo).

Até o último dia

No final de 2004, Eisner havia terminado de desenhar O Complô e sua derradeira história de Spirit - um crossover com o herói Escapista. Em dezembro daquele ano, fez duas cirurgias no coração por conta de uma artéria obstruída. Não se recuperou bem. De volta ao hospital, ainda escreveu, no leito, a introdução de uma reedição de Contrato com Deus e conversou por telefone com seu editor. Faleceu enquanto dormia na noite de 3 de janeiro de 2005.

Polêmicas

Um Contrato com Deus gerou um início de polêmica quando foi distribuído em escolas públicas no Brasil. Cenas de sexo e violência foram consideradas impróprias para o ensino fundamental - e o personagem brigando com Deus não foi bem visto pelos evangélicos. Mas houve uma polêmica maior quando tentou-se distribuir O Complô, sua última graphic novel, a membros do Parlamento Europeu. O órgão recusou o presente por conta do conteúdo da HQ. O Complô trata da conspiração que criou os "Protocolos dos Sábios dos Sião", um texto apócrifo antissemita. O Parlamento reviu a decisão posteriormente.

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