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Crítica

American Horror Story: Roanoke | Crítica

Misteriosa sexta temporada quebra seus paradigmas e entrega uma história cheia de metalinguagem

18.11.2016, às 16H24.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H24

Quem acompanha American Horror Story desde o começo, sabe bem como funcionavam as estratégias de marketing da série. Meses antes, um tema era anunciado e uma quantidade impressionante de teasersinvadiam a internet, aumentando as expectativas em torno do novo ano. Para a sexta temporada, contudo, a estratégia mudou e a medida tomada foi a do completo silêncio. Um mês de sua estreia, o público não sabia nada sobre o ano seis. Tema, personagens, referências... Nada. Até mesmo os teasersque eram liberados foram anunciados como falsos e Ryan Murphy determinou que qualquer resposta só seria dada no primeiro capítulo.

A resposta veio no nome de My Roanoke Nightmare, um programa desses da TV a cabo, que mostra pessoas contando histórias fantásticas enquanto uma dramatização ilustra os eventos. O choque foi imediato, mesmo porque o episódio não tinha a clássica abertura sombria dos outros anos e nem a temporada tinha um subtítulo assumido. Lily Rabe, André Holland e Adina Porter apareciam dando os depoimentos e Sarah Paulson, Cuba Gooding Jr e Angela Basset viviam a dramatização. A sexta temporada transformou a série, que ia para os comerciais assumindo a própria logomarca e tomava decisões estilísticas que tinham a ver com o que se espera de um programa desse tipo e não do que se espera de American Horror Story.

A quebra de paradigmas que já começou na divulgação, foi ganhando profundidade à medida que os episódios de My Roanoke Nightmare iam passando e não tínhamos a menor ideia de como a temporada evoluiria. Seria mesmo só isso? Sarah Paulsone os outros interpretariam somente os personagens da dramatização? Era uma incursão na escuridão completa. Todos os horrores que Matt (Cuba Gooding Jr. / André Holland), Shelby (Sarah Paulson / Lily Rabe) e Lee (Angela Basset / Adina Porter) viveram quando compraram uma casa no condado de Roanoke apareciam para nós como encenações dentro de um programa de TV. Não víamos Shelby gritar de dor "de verdade", porque sabíamos que aquela era Sarah Paulson vivendo Shelby enquanto a "verdadeira", vivida por Lily Rabe, dava seu depoimento. Era a ficção dentro da ficção, que construía uma quantidade considerável de camadas e que nos preparava para o que vinha adiante.

My Roanoke Nightmare

O programa-documentário teve cinco episódios e contava a história de Shelby (Sarah Paulson / Lily Rabe) e Matt (Cuba Gooding Jr. / André Holland), que para superar um trauma, compram uma propriedade no condado de Roanoke, conhecido nos EUA por conta da lenda de fantasmas mais antiga do país. Em 1587, a primeira colônia inglesa foi estabelecida no norte do território americano por Sir Walter Raleigh, que após algum tempo, designou o amigo John White como responsável por uma expedição de guerra que duraria três anos. White era colono de Roanoke e antes de partir deixou uma ordem: se os inimigos espanhóis tentassem atracar na colônia, todos deveriam fugir e deixar talhada numa árvore uma palavra que indicasse o destino da fuga. Três anos mais tarde, quando retornou, White encontrou a colônia deserta, mas com roupas, utensílios, tudo ainda lá, como se as pessoas tivessem literalmente desaparecido. A palavra talhada na árvore era CROATOAN, mas nenhum colono foi encontrado na ilha homônima que ficava próxima. Ninguém jamais reapareceu.

Essa explicação "oficial" apareceu de outra forma na mitologia de American Horror Story quando, no primeiro ano, a médium Billie Dean (também vivida por Paulson) contou à personagem de Taissa Farmiga sobre a lenda da colônia de Roanoke, em que os espíritos presos ao local teriam sido exorcizados com o uso da palavra Croatoan. Curiosamente, ao decidir usar Roanoke como tema do sexto ano, os criadores partiram para uma perspectiva diferente e tornaram os colonos os próprios "vilões". Kathy Bates assumiu o papel correspondente à esposa de John White e com a ajuda de uma entidade que vivia na floresta (personificada por Lady Gaga), tornou-se A Açougueira, uma mulher que matou a si mesma e a todos os outros colonos, para que assim passasse toda a eternidade "defendendo" seu solo sagrado.

Durante essas cinco semanas, American Horror Story deu pouquíssimas pistas de onde queria chegar e nunca saiu dessa unidade mercadológica. Aquela era um programa-documentário que estava indo ao ar para eles, os espectadores velados daquela realidade, e para nós. Um jogo de camadas de envolvimento realmente intrigante e que chegou ao seu apogeu no episódio seis, quando My Roanoke Nightmare teve seu "episódio final" e passamos a nos indagar: e agora?

Return To Roanoke: Three Days In Hell

O sexto episódio do sexto ano de AHS começou com uma inscrição na tela que dizia que após o sucesso da exibição de My Roanoke Nightmare, os produtores tiveram a ideia de levar o elenco e as pessoas reais para uma temporada filmada dentro da propriedade. Porém, algo teria dado errado e apenas UM deles saíra vivo da experiência. A inscrição também dizia que o material estava indo ao ar depois de muita deliberação e que o espectador deveria se preparar para assistir a algo extremamente violento. Então, Return to Roanoke teve sua estreia e tridimensionou a metalinguagem da temporada a um nível sem precedentes na teledramaturgia contemporânea.

O fato é que estávamos assistindo a um programa sobre outro programa, dentro de um programa. O reality show encomendado para ser a segunda temporada de My Roanoke Nightmare reunia os personagens e seus representantes reais dentro da casa. Ou seja, Sarah Paulson agora era a atriz que viveu Shelby, convivendo com a própria Shelby, o que deu aos atores que estiveram nas dramatizações a chance de voltarem interpretando os "atores" da dramatização. Algo extremamente engenhoso e que oferecia ao elenco e aos roteiros inúmeras possibilidades - todas elas regidas pela ideia de que o espectador está sempre interessado na tragédia seguinte, seja ela "real" ou não.

Se aproveitando disso, Ryan Murphy incutiu sobre os dois programas de TV que permearam a temporada uma série de críticas ácidas sobre a indústria do entretenimento americana e sua vaidade, egocentrismo e superficialidade. Ainda que sendo perseguidos por uma morte iminente, a consciência da câmera, do reality, nunca era abandonada pelos personagens e noções de importância sobre fama invadiram personagens como o de Kathy Bates de maneira impressionante. Tempo de tela, aquela mísera participação, aquela promessa de protagonismo... O ego foi matando personagens, numa clara alusão à vigente redistribuição de valores pessoais quando o assunto é Hollywood. É emblemático quando, logo antes de morrer, um dos personagens diz aos prantos: "eu só queria estar na TV".

The Final Girl

Roanoke também foi a temporada mais brutal da série. Com uma dramaturgia tão focada no mercado televisivo que explora a violência, era natural que American Horror Story escolhesse duas modalidades de horror extremamente contemporâneas: o found footage e o torture porn. Mutilações, eviscerações e até canibalismo estiveram no menu desse ano, com referências claras a obras que remetem aos dois subgêneros do horror. Found footages como A Bruxa de Blair e torture porns como Jogos Mortais e O Albergue fizeram parte da essência dessa temporada, que mesmo sem os eventuais closes estilizados, chocaram e perturbaram pela crueza e brutalidade de muitos momentos.

E notório que há uma espécie de incontinência narrativa ao longo da série e que incomoda muita gente que não acredita no senso de alegoria proposto por seu estilo. Talvez por isso a organização desse ano tenha funcionado melhor para uma grande fatia da audiência. Roanoke centralizou sua dramaturgia na exibição desses programas e manteve essa unidade até mesmo no episódio final, quando cada bloco foi dedicado a um tipo de programa de TV diferente, todos eles partes de uma mesma gênese: a mídia sempre explorará a tragédia de todas as formas possíveis, até que não reste mais nenhuma gota de sangue para escorrer. Foi a temporada mais violenta, mais focada e mais americana, cheia dessa atual vaidade e ambição que são transmitidas todos os dias em full HD.

Lee, a surpreendente personagem de Adina Porter, tornou-se o centro da narrativa a partir dos três últimos episódios, confirmando a capacidade de American Horror Story de crescer ou derrubar tramas em uma única semana. A controvérsia proposta pelo crescimento dela na trama sempre foi outro interessante ponto da proposta de Roanoke. Qualquer julgo, positivo ou negativo, que viéssemos a ter sobre ela ou sobre qualquer outro personagem menos complexo, só poderia ser feito de acordo com a ótica, a edição de um programa de TV, justamente porque os personagens só apareceram para nós de acordo com essas diretrizes. Isso torna histórica a estrutura narrativa desse ano, que fez com que nós, espectadores da realidade; e eles, os espectadores implícitos, fossemos um só, com nossa propensão natural a tomar partidos, ditar morais e acreditar em recortes tendenciosos.

No final das contas, toda a estrutura violenta e cruel da temporada caminhava na direção do único paradigma que a série não quebrou: em todos os seus anos, American Horror Story sempre exemplificou sentimentos de forma extrema, sombria; e o amor está entre eles. Nos dez minutos finais a série escapou do olhar midiático e retomou parte desse "lirismo subversivo". Desde o começo sabíamos que só haveria um sobrevivente, mas no espírito de completa imprevisibilidade dessa temporada, até mesmo a final girl, não foi eleita segundo as normas convencionais. Enfim, lá estava ele, o amor violento que subjuga e sacrifica, numa versão quase incompreensível, ainda que tão humana.

Roanoke chegou ao fim sem agradar a todos exatamente por isso, mas terminou provando que o universo da série ainda tem muito para provocar e oferecer.

Nota do Crítico
Excelente!

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