Séries e TV

Artigo

Sem Volta | Ambicioso projeto tem sua dignidade, mas subestima o público com didatismo e obviedade

Série da Record é quase uma cópia de Lost

23.01.2017, às 18H04.
Atualizada em 23.01.2017, ÀS 19H04

Era uma vez o mundo do entretenimento, no início dos anos 2000, dividido entre sitcoms, procedurais médicos/policiais e dramas influenciados pelo sucesso de Família Soprano. Até que em 22 de setembro de 2004, o canal americano ABC lançou uma série sobre sobreviventes de um avião e dividiu as águas novamente.

None

Lost apresentava uma nova maneira de contar uma história: fragmentada, levando o espectador a descobrir coisas sobre os personagens que só ele sabia, através de flashbacks pré-desastre, que ajudavam a compôr brilhantemente a personalidade de cada um dos sobreviventes. Com o tempo, a série se aperfeiçoou na prática, levando a narrativa para caminhos bifurcados que desafiavam o espectador a juntar as peças sozinho.

Daí para adiante um monte de "homenagens" foram feitas em outros programas. Lost tinha provado aos executivos da indústria que o público era capaz sim de se relacionar com dramaturgias inteligentes e complexas, que havia grandes possibilidades de catarse no exercício da descoberta progressiva. Isso resultou na inauguração de um novo estilo de storytelling, que se repetiu exaustivamente e, em alguns casos, encontrou êxito na transcrição criativa. Para alguns outros programas, contudo, a simples tentativa de repetição condenou-os à "morte". Definitivamente, subestimar a audiência é um contrato de risco.

Sem Volta, série em 13 episódios que a Record resolveu colocar no ar para lutar por um lugar no mercado, cometeu esse erro de emular Lost sem se preocupar com conteúdo. Criada por Gustavo Lipsztein e dirigida por Edgar Miranda, a produção partiu da mesma premissa e invocou a mesma forma: um grupo de sobreviventes de um desastre luta para sobreviver na mata e, enquanto seguem, flashbacks de suas vidas antes da tragédia vão informando ao público detalhes sobre suas vidas e personalidades. A reprodução - cópia até - pode ser muito efetiva se for adornada com qualidade textual e uma boa direção. O problema de Sem Volta é que ela só finge ousadia. No final das contas, pega seu público pela mão, senta ele na cadeirinha e quase desenha tudo que precisa ser entendido e apreciado.

Sem Volta (mesmo)

None

A história começa com uma família de montanhistas resolvendo escalar o Pico da Agulha do Diabo, no Rio de Janeiro, como forma de celebração pelo aniversário de seu caçula. Aqui as recorrências já começam a aparecer em abundância. O núcleo familiar está partido e a experiência servirá para reconectar esses elementos. Além deles, personagens periféricos que estão ali apenas para morrer pelo caminho, completam o elenco. E temos tudo do gênero sendo encaixado sem nenhuma preocupação com nuances. O guia ambicioso, o personagem "misterioso" que todos odiarão no começo para depois entender que "ele também tem um coração", a "loira-burra" que se revela carismática, o casal que se formará no processo, o casal que se separará no processo, o personagem que fará de tudo para resgatar um membro da família e uma equipe de buscas que não encontrará ninguém até que seja conveniente.

None

O problema é que Sem Volta não surpreende em nada e não colore sua descarada inspiração. Ela subestima seu público usando uma hedionda fotografia alaranjada para diferenciar passado de presente e aproveita para fazer com que todas as intenções sejam descritas pelo texto quase como se aquela fosse uma bula verborrágica. A enxurrada que tira todos da trilha é uma ideia interessante e bem executada, mas logo os "clássicos" do survivor movie começam a aparecer e lá vem a cena da morte de alguém sendo devorado por um bicho, a cena em que alguém leva uma picada e morre, a cena de alguém tendo que ser amputado, a cena de alguém morrendo quase na hora do resgate, a cena da ponte que precisa ser atravessada, a cena de alguém que se perdeu e todos acharam que estava morto, mas não estava... É impressionante como tudo começa a se revelar uma simples reprodução de influências, sem nenhuma criatividade (algo que também afetou a igualmente repetitiva Supermax, da Globo).

Ao passo em que vai se aproximando do final, os problemas se acentuam vertiginosamente. A própria perspectiva de que aquelas pessoas passariam tanto tempo ali - muitas vezes em campo aberto - sem serem encontradas já é incômoda. Mais ainda é ver como para cumprir o intuito de chegar até onde quer na trama, o roteirista não se preocupa com o mínimo de verossimilhança: o personagem de Heitor Martinez passa todo o tempo de série desaparecido. Após os sobreviventes serem encontrados, as equipes ainda passam um bom tempo procurando-o, sem sucesso. Mas sua filha resolve voltar com mais dois outros personagens e o encontra em poucas horas, naquela imensidão de território - e vivo.

A covardia com a qual os destinos são traçados é notória. O final é piegas, morno e previsível. Nenhuma das atuações é digna de menção, porque, de fato, os atores estão fazendo pelos personagens o que o texto rasteiro exige. Se há, no meio de tudo isso, algo que merece louvores é a própria iniciativa em si. Sem Volta, assim como Supermax, merece ser aplaudida pelo investimento, pela tentativa, algo que já é válido no meio do nosso mercado.

O projeto buscou locações reais e isso ajudou a dar elegância ao produto final, que com belas imagens já se destaca do miolo de programação teledramatúrgica que sempre fica muito preso ao eixo da Globo. Mais séries precisam ser feitas, para que a TV aberta brasileira comece a aprender a fazê-las, usando referências a favor e não como muleta. Ou isso ou as produções continuarão não voltando, literalmente. O que nos fará conhecidos como o país das primeiras (e únicas) temporadas. Nesse caso Sem Volta acaba sendo um título premonitório e debochado, o que o espectador brasileiro definitivamente não precisa e não merece.

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Omelete no Youtube

Confira os destaques desta última semana

Ao continuar navegando, declaro que estou ciente e concordo com a nossa Política de Privacidade bem como manifesto o consentimento quanto ao fornecimento e tratamento dos dados e cookies para as finalidades ali constantes.