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The Leftovers | Começa a última temporada da melhor e menos vista série da HBO

Primeiro episódio do ano final da série acerta no equilíbrio dramático

17.04.2017, às 12H16.
Atualizada em 17.04.2017, ÀS 13H07

Assim como aconteceu na premiere da segunda temporada de The Leftovers, o primeiro quadro que vemos quando o terceiro e último ano da série começa é o de um passado remoto, nos anos 1800, quando uma vila vive a expectativa de um apocalipse supostamente inevitável, calculado por uma espécie de líder do lugar. O primeiro dia anunciado por ele amanhece ileso, mas parte da comunidade ainda acredita no fim iminente e após uma nova data marcada, voltam a esperar pela salvação eterna. Porém, aquele segundo dia também amanhece ileso e uma nova data é marcada. A sequência mostra como a cada nova marcação menos gente acredita nesse apocalipse matemático, embora a mulher daquela família inicialmente descrita permaneça com sua fé intacta. Ela volta, data após data, noite após noite, sozinha no telhado, de branco, esperando do céu a resposta que nunca vem.

The Leftovers começou seu próprio caminho para o fim da mesma forma que em seus dois primeiros anos: oferecendo ao seu público uma perspectiva extremamente bela e referencial a respeito da natureza humana, essa que está sempre em busca de significados, quando na verdade as coisas às vezes apenas são, como a própria letra de Let The Mystery Be (tema de abertura do segundo ano) propõe. A sequência inicial da premiere da segunda temporada ilustrava como os terrores em torno de uma perda repentina são circunstanciais e aleatórios, sendo o homem o bicho que atribui mitologia ao que não pode ser explicado. Nesse começo de última temporada, estamos diante de um desafio ao conceito de fé: será mesmo que acreditar não é o que mantém o mistério vivo?

Não é como se a série pretendesse responder essa pergunta efetivamente. Os que acompanham The Leftovers sabem que sua natureza é tão complexa quanto os que ela acompanha naquele mundo pós Partida RepentinaDamon Lindelof Tom Perrota criaram uma identidade sombria e dramática para uma narrativa que pretende descrever um mundo distorcido, socialmente desamparado, entregue a uma anarquia emocional e a um culpado ressentimento com Deus. Os que foram levados em 14 de Outubro podem até saber as respostas, mas esse é um programa sobre “as sobras” e para os que ficam a vida só prova dia após dia que tudo é uma questão de conformidade e não de descoberta.

Sete Anos de Tribulação

Dizem as escrituras a respeito do Arrebatamento que após a subida aos céus dos “escolhidos”, sete anos de tribulação tomariam conta do mundo e preparariam a revelação do anticristo. Esses sete anos seriam divididos em duas partes de três anos e meio. Não coincidentemente, a primeira temporada de The Leftovers se passa três anos depois do dia da partida. Os eventos que se seguem duram alguns meses e culminam com a quase destruição absoluta de Jarden. Mais três anos depois, a vida parece buscar estabilização, justamente quando o sétimo aniversário do evento está para chegar. Flertar com noções religiosas, messiânicas e apocalípticas parece ser parte do intuito desse último investimento criativo.

Mas, foi surpreendente encontrar os personagens ainda em Jarden no começo dessa temporada. Damon não tentou fazer suspenses desnecessários e mostrou quase todo o elenco principal (com algumas emblemáticas ausências) nesse reajuste da rotina após a grande explosão que matou um monte de membros dos Remanescentes Culpados. Como acontece em todos os seus começos, há uma falsa atmosfera de estabilidade e é como se um grande pesar estivesse escondido na neblina e fosse escapar para devorar otimismos a qualquer momento. Viver em negação parece ser a única forma de insistir no mundo e lá estão os personagens do programa, quase todos eles, entregues a sorrisos e esperanças que parecem fadadas ao fracasso.

Tudo é absolutamente cíclico. Kevin (Justin Theroux) está de novo com o uniforme da polícia e soa messiânico aos olhos de Matt (Christopher Eccleston), John (Kevin Carrol) divide com Laurie (Amy Brenneman) um trabalho de “oferecimento de propósitos” e Nora (Carrie Coon) reaparece com aquele semblante seguro que sempre parece esconder algum torpor absoluto. É notória a maneira como o episódio se constrói em torno de uma vontade sincera daqueles personagens de aplicar um pouco de normalidade à vida, mas que de tempos em tempos, por razões sempre ligadas ao que aconteceu em 14 de outubro, essa capenga tentativa de restabelecer a rotina dentro dos modelos pré-partida, fracassa. De certa forma, é como se a série estivesse sempre tentando provar o ponto de vista dos Remanescentes.

Mimi Leder fez um trabalho impecável na direção dessa premiere, mantendo as escolhas dramáticas de ângulos em perfeito equilíbrio com a solaridade que passou a ser parte da paleta fotográfica no segundo ano. Mas, a trilha sonora continuou sendo aquela responsável por nos transportar imediatamente para a atmosfera da série. Isso, aliás, é interessante a respeito de The Leftovers. Ela tem um DNA muito particular, ligado bem mais à imagem e ao som, ao que existe de sinestésico na relação entre texto, atuação e ambientação. Essa não é uma série de respostas. Por isso, os últimos minutos, lindamente construídos por música e quadro; e que revelaram um pedaço de mistério dentro de uma estrutura que EXIGE resposta, até fogem do que o programa propôs até aqui. Mas enfim, são os últimos passos e Lindelof já provou que sabe para onde quer ir.

Em sete semanas a Partida Repentina fará sete anos (em 13 dias dentro da trama). Em sete semanas The Leftovers chegará ao fim. E parece muito curioso que a fé seja a única coisa que fez a série chegar até aqui, enquanto por dentro dos domínios daquela ficção, ela seja questionada e julgada todos os dias. Surpreendente e imperscrutável, a série sempre teve a capacidade de nos deixar no completo escuro sobre o que vai acontecer, o que é uma admirável qualidade. Boa dramaturgia, cheia de referências, com ótimo texto e que saiba desviar de obviedades é algo que quase beira o onírico, mas que graças a HBO é concreto, visível e estará no ar todo domingo, até 4 de junho. Não dá pra perder.

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