Assim como aconteceu na premiere da segunda temporada de The Leftovers, o primeiro quadro que vemos quando o terceiro e último ano da série começa é o de um passado remoto, nos anos 1800, quando uma vila vive a expectativa de um apocalipse supostamente inevitável, calculado por uma espécie de líder do lugar. O primeiro dia anunciado por ele amanhece ileso, mas parte da comunidade ainda acredita no fim iminente e após uma nova data marcada, voltam a esperar pela salvação eterna. Porém, aquele segundo dia também amanhece ileso e uma nova data é marcada. A sequência mostra como a cada nova marcação menos gente acredita nesse apocalipse matemático, embora a mulher daquela família inicialmente descrita permaneça com sua fé intacta. Ela volta, data após data, noite após noite, sozinha no telhado, de branco, esperando do céu a resposta que nunca vem.
The Leftovers começou seu próprio caminho para o fim da mesma forma que em seus dois primeiros anos: oferecendo ao seu público uma perspectiva extremamente bela e referencial a respeito da natureza humana, essa que está sempre em busca de significados, quando na verdade as coisas às vezes apenas são, como a própria letra de Let The Mystery Be (tema de abertura do segundo ano) propõe. A sequência inicial da premiere da segunda temporada ilustrava como os terrores em torno de uma perda repentina são circunstanciais e aleatórios, sendo o homem o bicho que atribui mitologia ao que não pode ser explicado. Nesse começo de última temporada, estamos diante de um desafio ao conceito de fé: será mesmo que acreditar não é o que mantém o mistério vivo?
Não é como se a série pretendesse responder essa pergunta efetivamente. Os que acompanham The Leftovers sabem que sua natureza é tão complexa quanto os que ela acompanha naquele mundo pós Partida Repentina. Damon Lindelof e Tom Perrota criaram uma identidade sombria e dramática para uma narrativa que pretende descrever um mundo distorcido, socialmente desamparado, entregue a uma anarquia emocional e a um culpado ressentimento com Deus. Os que foram levados em 14 de Outubro podem até saber as respostas, mas esse é um programa sobre “as sobras” e para os que ficam a vida só prova dia após dia que tudo é uma questão de conformidade e não de descoberta.
Sete Anos de Tribulação
Dizem as escrituras a respeito do Arrebatamento que após a subida aos céus dos “escolhidos”, sete anos de tribulação tomariam conta do mundo e preparariam a revelação do anticristo. Esses sete anos seriam divididos em duas partes de três anos e meio. Não coincidentemente, a primeira temporada de The Leftovers se passa três anos depois do dia da partida. Os eventos que se seguem duram alguns meses e culminam com a quase destruição absoluta de Jarden. Mais três anos depois, a vida parece buscar estabilização, justamente quando o sétimo aniversário do evento está para chegar. Flertar com noções religiosas, messiânicas e apocalípticas parece ser parte do intuito desse último investimento criativo.
Mas, foi surpreendente encontrar os personagens ainda em Jarden no começo dessa temporada. Damon não tentou fazer suspenses desnecessários e mostrou quase todo o elenco principal (com algumas emblemáticas ausências) nesse reajuste da rotina após a grande explosão que matou um monte de membros dos Remanescentes Culpados. Como acontece em todos os seus começos, há uma falsa atmosfera de estabilidade e é como se um grande pesar estivesse escondido na neblina e fosse escapar para devorar otimismos a qualquer momento. Viver em negação parece ser a única forma de insistir no mundo e lá estão os personagens do programa, quase todos eles, entregues a sorrisos e esperanças que parecem fadadas ao fracasso.
Tudo é absolutamente cíclico. Kevin (Justin Theroux) está de novo com o uniforme da polícia e soa messiânico aos olhos de Matt (Christopher Eccleston), John (Kevin Carrol) divide com Laurie (Amy Brenneman) um trabalho de “oferecimento de propósitos” e Nora (Carrie Coon) reaparece com aquele semblante seguro que sempre parece esconder algum torpor absoluto. É notória a maneira como o episódio se constrói em torno de uma vontade sincera daqueles personagens de aplicar um pouco de normalidade à vida, mas que de tempos em tempos, por razões sempre ligadas ao que aconteceu em 14 de outubro, essa capenga tentativa de restabelecer a rotina dentro dos modelos pré-partida, fracassa. De certa forma, é como se a série estivesse sempre tentando provar o ponto de vista dos Remanescentes.
Mimi Leder fez um trabalho impecável na direção dessa premiere, mantendo as escolhas dramáticas de ângulos em perfeito equilíbrio com a solaridade que passou a ser parte da paleta fotográfica no segundo ano. Mas, a trilha sonora continuou sendo aquela responsável por nos transportar imediatamente para a atmosfera da série. Isso, aliás, é interessante a respeito de The Leftovers. Ela tem um DNA muito particular, ligado bem mais à imagem e ao som, ao que existe de sinestésico na relação entre texto, atuação e ambientação. Essa não é uma série de respostas. Por isso, os últimos minutos, lindamente construídos por música e quadro; e que revelaram um pedaço de mistério dentro de uma estrutura que EXIGE resposta, até fogem do que o programa propôs até aqui. Mas enfim, são os últimos passos e Lindelof já provou que sabe para onde quer ir.
Em sete semanas a Partida Repentina fará sete anos (em 13 dias dentro da trama). Em sete semanas The Leftovers chegará ao fim. E parece muito curioso que a fé seja a única coisa que fez a série chegar até aqui, enquanto por dentro dos domínios daquela ficção, ela seja questionada e julgada todos os dias. Surpreendente e imperscrutável, a série sempre teve a capacidade de nos deixar no completo escuro sobre o que vai acontecer, o que é uma admirável qualidade. Boa dramaturgia, cheia de referências, com ótimo texto e que saiba desviar de obviedades é algo que quase beira o onírico, mas que graças a HBO é concreto, visível e estará no ar todo domingo, até 4 de junho. Não dá pra perder.