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Crítica

Dear White People - 1ª Temporada | Crítica

Justin Simien aprofunda discussão sobre racismo através de uma narrativa didática e deliciosamente incômoda

03.05.2017, às 19H55.
Atualizada em 05.05.2017, ÀS 12H14

Depois de várias produções denunciando o racismo de formas subliminares, a Netflix resolveu comprar de vez essa luta e lançou Dear White People, série onde o antagonista principal não é um vilão com superpoderes ou um político higienista, mas uma estrutura social invisível e ao mesmo tempo absurdamente sólida. O serviço de streaming já faz sua parte na representação étnica e na discussão com sensatez de problemáticas raciais com programas como The Get Down, Luke Cage Chewing Gum, mas Dear White People finalmente levou para a televisão uma aula didática sobre como, onde, como e o que é preconceito racial.

A série é uma adaptação do filme Cara Gente Branca, premiado em 2014 no Festival de Sundance, e gira em torno de um grupo de alunos negros que se sentem frequentemente desrespeitados em uma universidade onde a maioria dos estudantes são brancos - como qualquer instituição com caráter elitista. Justin Simien, diretor do filme e roteirista da adaptação, conseguiu na série ter mais tempo para discutir e se aprofundar pedagogicamente em outras problemáticas relacionadas ao racismo de forma absolutamente brilhante.

A premissa da inquietação na trama é uma festa blackface, onde os estudantes brancos usam seus referenciais de pessoas negras de formas alegóricas e satíricas como fantasia. A série, inclusive faz questão de pontuar que esse é um hábito comum: brancos ocidentais frequentemente usam outras manifestações culturais, sejam elas asiáticas, latinas, indígenas, negras, ou qualquer coisa que não seja branca (ou alguém já viu uma festa à fantasia cuja temática fosse a de imitar pessoas brancas?), de forma caricatural para se divertir sem se preocupar com o tipo de estereótipos que estão ajudando a alimentar nesse processo.

Infelizmente, o próprio assunto-base do programa impede que os principais beneficiários dessa discussão sejam atingidos - as pessoas que mantém comportamentos preconceituosos, mas que se recusam a ouvir e aceitar isso. Como a própria série mostra, existe um incômodo no agente do preconceito em ser identificado como preconceituoso - ninguém, ou quase ninguém, quer estar do lado dos vilões de uma equação binária. Na trama, quando o personagem interpretado por Marque Richardson pede que seu amigo branco não use a palavra “nigga” em função do histórico pejorativo que ela carrega, ele automaticamente se ofende por ser identificado como alguém com potencial de ser ofensivo. A cultura racista faz com que o jovem branco se incomode menos com a possibilidade de ter ofendido o amigo e mais com o fato de ter sido alertado pelo comportamento racista. E é isso que a série mostra que o tempo todo dá combustível ao racismo: uma escala de poder onde as pessoas estão acostumadas a toda e qualquer necessidade branca se sobrepor às demandas negras.

De forma genial, a cena que começa com uma discussão onde negros pedem para não serem ofendidos e brancos dizem estar se sentindo censurados por, resumidamente, não poderem ofender, termina com a polícia invadindo a festa e escancarando até onde vai o racismo. Um policial interrompe a briga e direciona todos os questionamentos para o primeiro negro que encontra, colocando em dúvida que o rapaz pudesse mesmo ser um estudante daquela instituição e apontando uma arma para ele após sua revolta ao ser o único obrigado a se identificar. A situação acontece no quinto episódio da trama, que começa com os amigos de Reggie cobrando que o rapaz esfrie um pouco a cabeça e pare de viver cada segundo de sua vida em prol da militância. O que a cena mostra é que é impossível se desligar da luta quando ela está estampada na pele o tempo inteiro: sair na rua é um ato político para um indivíduo que a qualquer momento pode ser discriminado em função de uma característica intrínseca sua.

Além disso, a série faz um trabalho magistral ao conseguir tratar com certa ironia alguns dos comportamentos dos envolvidos na militância em ambiente acadêmico sem deslegitimar nenhum dos inúmeros mecanismos de quem luta por igualdade. Samantha White (Logan Browning), Reggie (Marque Richardson), Troy Fairbanks (Brandon P Bell), Colandrea “Coco” Conners (Antoinette Robertson) e Lionel (DeRon Horton) são os cinco negros protagonistas da trama e, de certo modo, cada um deles lida com a opressão de uma forma diferente - todas elas justificadas pelas suas experiências prévias.

Quando se condena Samantha por ser supostamente exagerada, a própria série pontua que é necessário que pessoas como ela existam para que moderados como Troy, o filho perfeito do reitor, sejam vistos como o meio-termo razoável e a luta por direitos, pelo menos, avance. Se a postura da estudante de audiovisual não existisse e as demandas de Troy fossem o máximo exigido, seria ele o radical da história. Outro ponto interessante da série é que pode parecer fácil, por exemplo, acusar Coco de ser uma vítima passiva em um primeiro momento, mas a acusação que se mostra superficial quando, no quarto episódio, é revelado que a jovem viu amigos e parentes serem mortos em função da etnia e, em função disso, optou por lidar com o racismo de outras maneiras.

Coco, aliás, é uma das melhores personagens da trama. A jovem ambiciosa aborda questões próximas de quem é envolvido na militância negra, como a discussão do colorismo (a ideia de que quanto mais escura for a pele de alguém, mais a leitura social afasta o indivíduo dos privilégios sociais dos brancos, mas que, se não for bem discutida, pode gerar sectarismo dentro do próprio movimento negro) ou a questão da solidão da mulher negra (quando Coco amarga sozinha enquanto se vê sendo preterida em relação às suas amigas brancas em uma festa). Antoinette Robertson faz um ótimo trabalho ao mostrar as contradições da personagem sem deixar que as justificativas delas soassem levianas ou menores do que deveriam. A forma como Coco lida com o racismo é um modo de defesa fruto de como a sociedade fez ela se sentir em inúmeras outras situações.

Dear White People aborda ainda outras questões referentes ao complexo universo do racismo, como relacionamentos interraciais e apropriação cultural. Não é por menos que a série é tão certeira: o time de diretores que colaboram com a atração já tocam em temas vitais ao debate do preconceito racial há algum tempo. A diretora do quarto episódio é Tina Mabry, responsável pelo longa Mississippi Damned, que fala sobre a vida de três crianças negras lidando com o ciclo de abuso, vício e violência familiar. No quinto episódio, temos a direção de ninguém menos que Barry Jenkins, nome à frente do ganhador do Oscar Moonlight.

Como ser vítima de um sistema de opressão não impede ninguém de ser o agente da opressão em outro, infelizmente a série esbarra em alguns problemas ao falar, por exemplo, de orientação sexual. Ainda que isso não tire a legitimidade de Dear White People em todos os debates que levanta, ela desliza quando resume a jornada de autodescoberta de Lionel, um dos melhores personagens da trama, ao clichê do gay tímido apaixonado pelo amigo hétero com o qual nunca terá chance - é esse tipo de estereótipo que faz com que heterossexuais desenvolvam a lógica preconceituosa e arrogante de que gays, lésbicas e bissexuais vão atacá-los na primeira oportunidade. Aliás, falando em bissexuais, a série elimina qualquer possibilidade de bissexualidade ser vista como algo normal quando um dos diálogos da trama diz que a professora que mantém um caso com Troy “não é lésbica quando está na cama com ele” e retrata a dupla de estudantes de teatro dentro de uma lógica dicotômica.

Apesar disso, tendo em vista que a série é sobre conflitos raciais, é interessante como Dear White People pincela feedbacks de como outros grupos étnicos se sentem perante estereótipos criados por brancos. As manifestações dos asiáticos na trama são tão certeiras quanto a dos negros. O próprio ponto de vista de Gabe Mitchell (John Patrick Amedori) é interessante por mostrar que ele, ainda que ocasionalmente se desagrade com algumas coisas, entende que o seu incômodo pontual é muito menor do que o conjunto de privações e constrangimentos vividos pelos seus companheiros negros o tempo todo. E (importante!) a série não o glorifica por isso, nem o eleva ao status de herói só por ser alguém razoável.

A série talvez atinja muito mais quem já está familiarizado com a discussão do que quem precisa urgentemente se inteirar sobre o assunto. Dear White People tem o poder de desobstruir ouvidos brancos para a voz de pessoas negras. A série mostra que, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, estruturas de poder são menos sobre indivíduos e mais sobre grupos sociais. Se o rapaz branco na festa decidisse não falar mais a palavra “nigga” não por ter sido proibido, mas por simplesmente não estar disposto a ofender alguém de forma gratuita, certamente não veria o amigo na mira de uma arma unicamente por ele ser negro. O drama da série está muito mais no fato de que, ao contrário das fantasias na festa blackface, os brancos do programa não são caricaturais: existe muita gente que, assim como o editor do Pastiche, não entende que não há horizontalidade em comparar atacar negros e atacar brancos pelo simples fato de que negros já estão sendo atacados o tempo inteiro, ainda que seja difícil ver isso do alto da zona de segurança branca. E Dear White People ainda vai precisar de muitas temporadas para fazer isso claro na cabeça dos inúmeros potenciais leitores da Pastiche que existem por aí - que venham as próximas.

Nota do Crítico
Ótimo
Cara Gente Branca
Encerrada (2017-2021)
Cara Gente Branca
Encerrada (2017-2021)

Criado por: Justin Simien

Duração: 4 temporadas

Onde assistir:
Oferecido por

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