Séries e TV

Crítica

Twin Peaks | Crítica

Série retorna sob o signo do fim dos tempos

04.09.2017, às 18H06.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H47

No documentário A Vida de um Artista, sobre o início de sua carreira, David Lynch conta que morar na Filadélfia o ajudou a encontrar seu rumo artístico, porque era uma cidade desesperançada feita de gente racista e raivosa. Existe essa noção equivocada de que fazer surrealismo é obedecer a regras descoladas da realidade para dar vida a imagens do subconsciente, mas mesmo nos seus momentos mais surrealistas a obra de Lynch sempre ecoou um mal estar social, e nunca isso ficou tão evidente quanto nesta volta de Twin Peaks.

Originalmente, a série de TV de Lynch e Mark Frost foi pensada como uma brincadeira de gênero, uma trama de whodunit formatada como uma novelinha que ao invés de revelar o assassino mostrava semanalmente as perversões do americano médio, numa espiral de revelações e causalidades inconsequentes. Exibida numa época em que Lynch estava no auge no cinema (a primeira temporada foi ao ar em 1990, ano em que o cineasta ganhou a Palma de Ouro em Cannes por Coração Selvagem), Twin Peaks sempre pareceu um lúdico projeto paralelo, de vaidade.

A primeira coisa que muda, agora que a série voltou para uma terceira temporada quase 30 anos depois, é que Twin Peaks deixou de ser o hobby e se torna o principal canal de expressão audiovisual de Lynch, cuja carreira no cinema acabou (segundo o próprio diretor) depois de Império dos Sonhos (2006). Nessa década "ociosa", em que os EUA passaram pela crise imobiliária e pelo desencanto com o establishment, Lynch visivelmente deixou assentar um pessimista diagnóstico próprio da América, e nos 18 episódios dessa volta de Twin Peaks o que testemunhamos é a vazão desse julgamento, um olhar reativo bastante melancólico diante da miséria econômica que se abateu sobre a clásse baixa e média do país.

O esperado retorno, então, se mostra extremamente ambicioso como captura de um sentimento coletivo, e poucas vezes Lynch - que parece acreditar mesmo no discutível mantra de que "a TV é o novo cinema" - foi tão politico. Ao mesmo tempo, poucas coisas são tão anti-TV quanto Twin Peaks, narrativa organizada sob a lógica do sonho ("vivemos dentro de um sonho" é a frase mais didática e óbvia que o agente Dale Cooper poderia repetir em cena) em que os episódios de plot e mitologia têm muito mais cara de tapa-buraco do que os episódios de piração e fluxo de consciência.

Em Twin Peaks a bizarria é a regra, e mesmo os filhotes que hoje povoam a TV sob a influência de Lynch, como as séries de Damon Lindelof e Ryan Murphy, parecem absolutamente mundanos na comparação. Assim, seria de se esperar que o ponto fraco da volta fosse justamente a amarração; quando precisa ligar os pontos, perto do final, Twin Peaks resulta bem desleixado (por exemplo, ao estabelecer o parentesco de Diane e Janey-E), e os becos sem saída são resolvidos com o Deus Ex Machina do "foi o Major quem me disse". De qualquer forma, não é essa a preocupação de Lynch; em um episódio essencialmente expositivo como o 9, por exemplo, a graça são os silêncios constrangedores. É como se não houvesse mesmo nada a ser explicado. Sempre que Twin Peaks sobe o tom da seriedade (como na disputa de queda de braço) é para fins anedóticos.

Ao mesmo tempo, temos aqui uma narrativa que, apesar do tom irônico, acredita muito na capacidade de fabulação do ato de contar histórias - uma ideia de esperança que vai na contramão do niilismo. É por isso que quando os personagens lembram casos passados - como quando Albert repassa a Tammy o primeiro caso paranormal em 1975, ou na história do vigia britânico com a luva de borracha, ou quando Michael Cera conta suas aventuras de estrada - o espectador não ganha imagens de flashback para ilustrá-las e "dar-lhes vida". Tudo o que temos é o relato oral do presente e não há alternativa a não ser acreditar nele. (A não ser que o flashback envolva Monica Bellucci e David Bowie pois aí existe uma obrigação moral de colocar Monica Bellucci e David Bowie encarnados em imagem.)

Estrada perdida

Se Twin Peaks é uma série que, por trás do seu caráter evidentemente lúdico, acredita na potência do relato, o que David Lynch tem então para nos contar do mundo? Que sentimento coletivo é esse que ele busca capturar? O cineasta não se faz de desentendido; ele vai à origem das suas obsessões - a América da sua infância, dos subúrbios feitos de fantasia e dos mitos em estradas sem fim, da noção de família nuclear com suas mulheres vulneráveis e seus homens de camisa de lenhador e carros musculosos - para traçar uma historiografia dos espectros.

Partindo de 1945, com a bomba atômica (flashback apocalíptico que Lynch nunca filmara antes na carreira, embora na prática sempre o assombrasse), assistimos a uma deterioração do corpo e do espírito, e a presença de espectros no mundo físico é o grande tema da temporada: seja nos zumbis cobertos de sujeira, seja no Cooper catatônico, ou mesmo na existência de uma delegacia dentro da própria delegacia de Twin Peaks. Os fantasmas existem e transitam entre nós, carregando a morte (a trenódia que Krzysztof Penderecki compôs às vítimas de Hiroshima toca em diversos episódios), e nesta América pós-crise onde até mesmo o diner RR foi tomado pelo organismo das grandes corporações, os pequenos empreendimentos individuais são enquadrados frontal e geometricamente como mausoléus: o posto de gasolina de Big Ed, a loja de cortinas de Nadine.

O índio Hawk está muito mais presente nesta temporada talvez não para suprir a ausência de Harry (o ator Michael Ontkean foi o único que não quis voltar do elenco original) mas porque seja o elo mais remoto dessa América de hoje com seus fantasmas passados, pré-coloniais. Um dos momentos mais fortes da temporada, ao lado da imagem de Lynch debaixo do pôster do cogumelo atômico, não seria outro senão a despedida da doente Catherine E. Coulson, a Log Lady, no par inesperado que ela forma com Hawk. Há um mal antigo em cena, geracional, e que alienação tremenda vivem hoje as pessoas em Twin Peaks sob o peso desse mal, personagens que parecem cascas de personagens passados, falando sozinhos e escutando sons que não existem (embora o formidável desenho de som assinado pelo próprio Lynch nos mostre que existem, sim).

Ao longo de 18 episódios que transcorrem com aparente descompromisso, o que vemos é uma série deixar cozinhar dentro de si não os pequenos pecados novelescos de luxúria da primeira temporada, e sim uma doença social maior. Tudo é feito de lugares amplos e vazios no coração do país, de terrenos baldios e casas sem crianças, e mesmo no lento plano aéreo da Manhattan toda iluminada que abre a temporada, a Big Apple parece em animação suspensa. O finale anticlimático com a viagem pela estrada à noite retoma isso, a incerteza, o vazio. Quando vemos nesta temporada algum sinal de normalidade e "saúde", isso surge como um apêndice deslocado da série, como os números musicais no Roadhouse cheios de um público jovem em transe (e que até segunda ordem podem ser só um delírio na cabeça de uma Audrey hospitalizada por demência, nunca se sabe).

Twin Peaks é político nas anedotas (que símbolo de 2017 é a pá de ouro de cavar merda!) e nos assombros, os caipiras e suas armas, a mulher que berra no trânsito parado, o cara que busca emprego mas sequer escreveu um CV direito, os casais desfeitos, o desempregado que vende sangue. Nesse império em fade-out, onde os únicos personagens conscientes do contexto e minimamente previdentes são aqueles que agem à margem das coisas (foras-da-lei, empresários fraudulentos, policiais corruptos) é absolutamente natural que muita construção de expectativa não dê em nada ou deixe várias perguntas sem respostas. Twin Peaks é político até quando transfere a frustração dos personagens para nós.

Dentro dessa lógica, chega a ser esperado que a solução De Volta para o Futuro da correção do passado não gere ao fim um futuro idílico e utópico, e sim desloque nomes e histórias, desfigurando-os. Talvez seja mais preciso dizer que o surrealismo para Lynch não é operar sob a lógica dos sonhos e sim sob a lógica dos pesadelos, porque as imagens que o assombram estão no passado, só fazem sentido nesse passado, ora remoto, ora curto (27 anos não é tanto tempo assim), enquanto sonhos lidam com imagens de um futuro almejado. Infelizmente, os dias do império dos sonhos já se foram.

Nota do Crítico
Excelente!

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