Em um dos episódios finais de Vade Retro, criação de Alexandre Machado e Fernanda Young, o afetado personagem de Tony Ramos, chamado de Abel Zebu, dá um de seus tradicionais monólogos iniciais sobre a natureza do mal que está velada na maioria das engrenagens sociais. Ele conta a história do milagre da transformação da água para o vinho de uma maneira lógica e convenientemente cética. A perspectiva que ele apresenta é simples, mas exerce um papel devastador naqueles que estão abertos ao questionamento: o bem, o milagre, o mal, todos esses impulsos elusivos são dependentes da crença, da fé.
Estão nesses monólogos de início de episódio as maiores qualidades dessa que já parece ser outra série global fadada a terminar com apenas uma temporada. O inégavel talento de Tony encontra, nesses momentos, um texto sagaz que é característico da obra de Fernanda Young, embora sozinho não consiga desviar o show de outros grandes problemas que o constituem. É como se toda semana Vade Retro flertasse com analogias provocativas sobre o que existe de mais impulsivo e egoísta na natureza humana. Mas, deixando a importância perder-se no caminho, em nome de decisões estilísticas equivocadas.
Baseado nisso, o que a série propõe é um flerte constante entre a ideia de que aquele homem é apenas um lunático corrupto que gosta de brincar de ser o capeta e a possibilidade real de que ele o seja, já que diante do nosso cenário político, não seria surpreendente se o capiroto em pessoa decidisse dar as caras em terrenos brasileiros. A série faz um investimento covarde nessa ambiguidade, tomando decisões fáceis e que enfraquecem a emissão de expectativas. O trabalho de Fernanda e Alexandre raramente foi sutil (Os Aspones talvez tenha sido a coisa mais minimalista que já fizeram), mas a sutileza é importante em um produto que tem as dinâmicas entre bem e mal tão essenciais para o texto.
Maniqueísmos
A trama de Vade Retro começa quando o namorado de Celeste (Monica Iozzi), que é vivido por Juliano Cazarré, conta ao tal Abel Zebu, no final de uma palestra, que ela é a criança que foi tocada pelo Papa em sua visita ao Brasil. Abel imediatamente decide usar Celeste para – através de uma forte manipulação – conseguir que ela abrace seus planos. É aí, então, que a série começa a deixar turvos seus objetivos, já que o começa como uma maneira de demonizar os corruptos profissionais, logo em seguida se transforma em um jogo de mistérios sobre aquele homem ser ou não o diabo. Vade Retro não se decide se vai ser metafórica ou literal.
Até a metade da temporada, parece que tudo que Abel quer é exercer seu charme transgressor contra uma advogada falida que fica deslumbrada com essa atenção. O texto fala em planos para fazê-la de laranja e para usá-la para lavagem de dinheiro. Até aí podemos elogiar a alegoria diabólica proposta pelo texto e que é jogada toda em cima da imagem do político e grande empresário típico do nosso país. Até mesmo o característico humor escatalógico dos criadores funciona quando eles fazem com que Abel esconda um rubi “dentro” da bunda de Celeste sem que ela saiba. Se um dos plots é o divórcio entre e ela a mulher Luci (Maria Luísa Mendonça, afetadíssima), faz sentido que ele encontre formas absurdas de ocultar bens.
O problema é que nos episódios finais, a série abandona a metáfora capitalista que é tão bem defendida nos monólogos iniciais e passa a ser uma piada longa e sem graça sobre Abel ser o líder de um culto satânico e querer engravidar Celeste para gerar um anticristo. A partir dai é “mestre” pra lá e “mestre” pra cá, rituais e uma progressão estranha da Celeste seduzida para a Celeste consciente. O texto continua insinuando que talvez Abel seja só um lunático, mas abandona essa interessante possibilidade de devaneio super produzido na última cena, quando o final do personagem é colocado em dúvida. De fato, a série não completa seu ciclo nem quando era metáfora e nem quando passa a ser literal.
Há bons momentos de riso, um elenco afiado e Monica e Tony cheios de boa química. Luciana Paes e Nathalia Falcão roubam quase todas as cenas em que aparecem, mas o maior problema de Vade Retro é a redundância constante de imagens maléficas unidas a tons de voz maléficos, atuações arregaladas e absolutamente nenhuma sutileza. Nesses tempos em que vivemos, narrativas sobre o mal essencial precisam se esforçar mais para serem acessíveis, justamente porque como Abel mesmo diz em dos monólogos iniciais, a mentira e a maldade são naturais e inerentes e não necessariamente refletem a imagem do diabo. Vade Retro falha em toda sua incursão antimaniqueísta e termina diabolicamente irrelevante. O pacto de sangue para o sucesso nesse caso, não funcionou.