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Carandiru | Crítica

<i>Carandiru</i>

10.04.2003, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H14

Carandiru
Brasil, 2003

Direção: Hector Babenco
Roteiro: Victor Navas, Fernando Bonassi, Hector Babenco, Dráuzio Varella (livro)

Elenco:
Luiz Carlos Vasconcelos, Milton Gonçalves, Ivan de Almeida, Ailton Graça, Maria Luisa Mendonça, Aída Leiner, Rodrigo Santoro, Gero Camilo, Lázaro Ramos, Caio Blat, Wagner Moura, Julia Ianina, Sabrina Greve, Floriano Peixoto, Ricardo Blat, Vanessa Gerbelli, Leona Cavalli, Milhem Cortaz, Dionisio Neto, Antonio Grassi, Enrique Diaz, Robson Nunes, André Ceccato, Bukassa, Sabotage, Rita Cadillac

Aristóteles (384-322 a.C.) era um sujeito sensato. Sobre as diferenças entre a elaboração de uma tragédia e a encenação, escreveu na sua Poética: "Às vezes, os sentimentos de temor e pena procedem do espetáculo; às vezes, do próprio arranjo das ações, como é preferível e próprio do melhor poeta. É mister arranjar a fábula de maneira tal que, mesmo sem assistir, quem ouvir contar as ocorrências sinta arrepios e compaixão em conseqüência dos fatos (...) Obter esse efeito por meio do espetáculo é menos artístico e requer apenas recursos cênicos".

Livro ou filme?

Logicamente, apesar de toda a sua genialidade, o pensador grego nunca imaginou que a imitatio (imitação, no sentido de espelho da realidade), na qual toda Arte se baseia, chegaria ao nível de fidelidade do cinema. Mas as palavras de Aristóteles explicam o certo desencanto que Carandiru (2003), o filme de Hector Babenco, provoca naqueles que já conheciam o livro-base da adaptação, o Estação Carandiru que o médico Drauzio Varella escreveu em 1999, e que já vendeu mais de 350 mil exemplares.

Não cabem, na metragem de uma película, todas as nuanças de uma grande coletânea de pequenos relatos. O médico do livro tem mais espaço para discorrer, criticamente, sobre o que vê. O médico do filme é passivo, quase um coadjuvante de luxo na Casa de Detenção. Uma adaptação se aventura, enfim, a perder muita coisa. Não é de se espantar: os melhores momentos na tela são aqueles que se aproveitam das limitações da Literatura - o número musical de Rita Cadillac e o hino nacional antes do futebol.

Enfim, de pouco vale ficar discutindo essas diferenças. São simplesmente duas modalidades artísticas distintas, o texto e a imagem, que dois mil anos de ensinamentos filosóficos trataram de separar - e de hierarquizar. Termina aqui, portanto, essa questão. Como dizem os detentos... apaziguou? Vamos ao filme, então.

Livro e Filme!

O "espetáculo", a que Aristóteles se refere, é termo correto para definir Carandiru. Tudo ali, da pré-produção ao acabamento, passa pelo signo do grandioso, do ambicioso. Foram 12 milhões de reais de orçamento, 250 profissionais envolvidos, 30 atores e milhares de figurantes, 700 tatuagens distribuídas entre o elenco pela equipe de maquiagem. As locações se dividiram entre os estúdios da Vera Cruz, em São Bernardo do Campo (onde foi construído um andar inteiro referente ao Pavilhão 9), o Presídio do Hipódromo, no Brás, e a própria Casa de Detenção, depois da desativação em setembro de 2002. A partir do dia 11 de abril, essa preparação, essa expectativa, se traduz em cerca de 250 salas de exibição no Brasil inteiro.

Tudo isso começou de maneira traumática, tanto para Varella quanto Babenco. Chamado em 1989 para ministrar um programa de prevenção à AIDS no Carandiru, o médico conviveu com os detentos do maior presídio da América Latina até 1992, ano do massacre. Diante de um contingente que ultrapassava os 7 mil homens, num espaço que comportaria no máximo 2 mil, Varella deixou de lado qualquer pré-julgamento e passou a combater a falta de higiene e a proliferação de doenças com empenho. Na mesma época em que o médico começou a recolher os relatos que resultariam no livro, o cineasta o procurou para tratar de um câncer no sistema linfático. Do tratamento saíram produtivas conversas.

Assim, antes mesmo da publicação de Estação Carandiru, Babenco já conhecia detalhes da vida carcerária - um universo em que a sobrevivência vale mais do que a desejada liberdade. Afeito aos temas sociais, já no meio das filmagens o cineasta percebeu que aquela realidade se assemelhava à de seu filme mais famoso, Pixote, a lei do mais fraco (1980). Algo como "se Pixote estivesse vivo, vinte e três anos depois, possivelmente estaria aqui".

Análise

A pluralidade de vivências e a lealdade às regras informais da prisão pontuam o filme, tendo o médico (Luiz Carlos Vasconcelos) como narrador. Surgem em cena um travesti (Rodrigo Santoro, com seios, hã, realistas) e seu parceiro (Gero Camilo), um mulherengo bígamo (Ailton Graça, ótimo), um matador convertido aos evangélicos (Milhem Cortaz), um veterano à espera da soltura (Milton Gonçalves) e uma infinidade de viciados e arrependidos. Sempre vividos por um elenco não menos que respeitável, que ainda inclui os novos talentos Lázaro Ramos, Caio Blat e Wagner Moura.

Graças às interpretações, Carandiru consegue imprimir humanismo aos seus personagens - essa a sua vitória mais louvável. Mas durante o seu momento crucial, o episódio do massacre, se sustenta no impacto visual. Uma vez que Varella e Babenco não se propuseram a criar um documentário (O Prisioneiro da Grade de Ferro, de Paulo Sacramento, em cartaz na mostra "É Tudo Verdade", preenche essa lacuna), a única voz ouvida é a dos presidiários sobreviventes. Desse modo, a verdade veiculada na televisão - 111 presos indefesos morreram à sangue-frio - é valorizada à milésima potência na película: correria, tiros, sangue, cães, corpos.

Um policial entra na cela, diz que "poupará" a vida do detento. Segundos depois, se vira, diz que "mudou de idéia", e metralha. As falas dos policiais durante a chacina seriam, assim, de um maniqueísmo constrangedor, não fosse tudo aquilo parte de um relato verídico - o que torna tudo ainda mais assustador. As escolhas de Babenco não têm meio termo, e a pouco sutil (quase redundante) inserção de "Aquarela do Brasil" no final do filme deixa isso claro. Goste-se ou não do resultado, é inevitável concluir: Carandiru faz valer com contundência a sua visão dos fatos.

Fotos: Marlene Bergamo © Copyright 2003 - HB Filmes

Nota do Crítico
Regular
Carandiru
Carandiru
Carandiru
Carandiru

Ano: 2002

País: Brasil

Classificação: 16 anos

Duração: 140 min

Direção: Héctor Babenco

Elenco: Luiz Carlos Vasconcelos, Milton Gonçalves, Ivan de Almeida, Ailton Graça, Maria Luísa Mendonça, Aida Leiner, Rodrigo Santoro, Gero Camilo, Lazaro Ramos, Caio Blat, Wagner Moura, Sabrina Greve, Júlia Ianina, Floriano Peixoto, Ricardo Blat, Vanessa Gerbelli, Leona Cavalli, Milhem Cortaz, Dionísio Neto, Sabotage

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