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Crítica

Vocês Ainda Não Viram Nada | Crítica

Alain Resnais sobrepõe passado e presente em mais um filme que evita as armadilhas da memória

17.10.2014, às 17H13.
Atualizada em 09.11.2016, ÀS 18H00

É um clássico da nostalgia a música que toca nos créditos finais de Vocês Ainda Não Viram Nada (Vous N'avez Encore Rien Vu), a versão de Frank Sinatra para "It Was a Very Good Year" de Ervin Drake. É com uma ponta de ironia que Alain Resnais usa a canção, porém, porque não há muito espaço para nostalgia no filme do cineasta francês, como a própria provocação do título já sugere.

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Na verdade, questionar a nostalgia, as armadilhas da memória, é uma questão importante no cinema de Resnais ("Memória não é um presente que se recebe", dizia Ele a Ela em 1959, em Hiroshima, Meu Amor). Há um preço que se paga por negligenciar a história e a renovação da experiência - por, vulgarmente, viver no passado - e Vocês Ainda Não Viram Nada toca nesse ponto ao fazer uma releitura do mito de Eurídice.

Na mitologia grega, em sua versão consagrada, Orfeu desce ao inferno de Hades para recuperar sua amada morta, Eurídice - com a condição de que Orfeu, ao resgatá-la, não olhasse para trás. Orfeu não resiste, vira-se para olhar Eurídice, e a perde definitivamente. O filme de Resnais se baseia em duas peças de Jean Anouilh, Eurydice e Cher Antoine, e traz o mito para a França, em uma estação de trem onde a Eurídice e o Orfeu do século 20 se conhecem, se apaixonam e se perdem ao longo de um dia.

O que está em jogo é a imagem nostálgica que Orfeu, apaixonado, imediatamente faz de Eurídice, e a isso Resnais adiciona outra camada de memória - uma específica do cinema.

O filme começa com vários telefonemas: Sabine Azéma, Lambert Wilson, Anne Consigny, Mathieu Amalric, Michel Piccoli e o resto do elenco (eles interpretam a si mesmos) ficam sabendo por telefone que morreu o dramaturgo Antoine d'Anthac (Denis Podalydès). São todos chamados à mansão de d'Anthac nos Alpes para uma leitura inusitada de testamento: o dramaturgo quer que os atores assistam a um vídeo que a jovem trupe de teatro Compagnie de la Colombe criou encenando o Eurídice de d'Anthac. Caberá aos veteranos decidir se a companhia novata tem ou não autorização para encenar a obra.

A princípio, faz-se uma separação clara. O diretor de fotografia Éric Gautier, que trabalha com Resnais desde Medos Privados em Lugares Públicos, ilumina os veteranos como se todos emanassem auras ou vestissem véus (ampliando o que Gautier e Resnais fizeram em Ervas Daninhas), a câmera de Gautier faz aqueles seus close-ups elegantes de sempre, a mansão parece um palácio de mármore cenográfico e a música de suspense remete a um certo glamour do velho cinema/teatro de gênero. Em oposição, o vídeo da Compagnie de la Colombe é cru, feito num galpão, com elenco multiétnico - é uma encenação com a urgência dos jovens, enfim. Nessa separação geracional, mais do que definir dois estilos, Resnais delimita o passado e o presente.

Mas como o cineasta recusa a nostalgia, essa separação em Vocês Ainda Não Viram Nada aos poucos vai se diluindo, quando os veteranos começam, como que por instinto, a encenar também a Eurídice de d'Anthac. A relação que se estabelece primeiro lembra o Jogo de Cena de Eduardo Coutinho, com interpretações de um mesmo texto que se sobrepõem para que possamos identificar as diferenças entre elas. Em seguida, a repetição dos diálogos dá mais gravidade à tragédia, como se fosse um mantra, e por fim a encenação dos velhos e dos jovens passa a ser uma só.

O acúmulo de vivências é um sinal de vida em Vocês Ainda Não Viram Nada, mas, para Eurídice, é sinônimo de sofrimento. "Todas as coisas que vemos nessa vida ficam conosco?", pergunta ela a Orfeu, atormentada por suas reminiscências. Ela e Orfeu estão sozinhos num quarto - a câmera recua para mostrar quão vazio está o quarto - e Eurídice diz não suportar os fantasmas que cercam os dois. Já Resnais entende que o cinema, mesmo o de vanguarda (ou especialmente o de vanguarda), se faz de fantasmas. Abraça a História, o acúmulo, num equilíbrio da falsidade atemporal do chroma-key com a inevitabilidade do pêndulo dourado do tempo presente.

Aos 90 anos, Alain Resnais vem sempre acompanhado do epíteto "jovem" quando é mencionado na mídia porque, exageros à parte, seus filmes se renovam um após o outro, embora sempre encontrem alguma forma de dialogar com o establishment do cinema francês pós-Nouvelle Vague. É como se a iconoclastia do começo da Nouvelle Vague se renovasse sempre, com o jogo de gêneros de Resnais. São filmes que recusam a nostalgia porque sabem que ser nostálgico não é nada mais do que conformar-se com a morte.

Vocês Ainda Não Viram Nada | Cinemas e horários

Vocês Ainda Não Viram Nada | Trailer legendado

Nota do Crítico
Ótimo
Vocês Ainda não Viram Nada!
Vous N´avez Encore Rien Vu
Vocês Ainda não Viram Nada!
Vous N´avez Encore Rien Vu

Ano: 2012

País: França

Classificação: 12 anos

Duração: 115 min

Onde assistir:
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