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Festival de Cannes mergulha de cabeça no pop para renovar público e reafirmar poder de fogo

Medalhões autorais dividem espaço no festival com filmes de horror, suspense, humor e perseguição policial

06.05.2016, às 16H00.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H37

De mão dada com o pop, num namoro mais apaixonado do que nunca com narrativas sabor pipoca, o Festival de Cannes inaugura sua 69ª edição na próxima quarta-feira(11), tendo Café Society, de Woody Allen como atração de abertura. Busca na cartilha dos filmes de gênero (suspense, sci-fi, thriller de ação, comédia policial, terror) meios para referendar os poderes autorregenartivos do Cinema frente à competição com a Era de Ouro da teledramaturgia e com novas mídias digitais. E nesse caminho, Cannes busca também reafirmar seu posto entre os mais significativos eventos culturais do planeta, fazendo de seu prêmio máximo, a Palma de Ouro, um atestado (político e estético) de renovação de linguagem, sem se submeter aos ditames da indústria para isso – coisa que o Oscar não consegue. Este ano, em concurso, tem filme de horror com Keanu Reeves (The Neon Demon, do dinamarquês Nicolas Winding Refn), filme de psicopata do diretor de Tropas Estelares (Elle, do holandês Paul Verheven), love story melosa (Loving, do americano Jeff Nichols), comédia de um diretor especializado em dramas existenciais (Ma Loute, do francês Bruno Dumont) e até filme brasileiro com direito a deslocamentos no tempo (Aquarius, do pernambucano Kleber Mendonça Filho). Cada um vem de um canto do mundo para colorir esses filões mais comerciais com tintas locais e ampliar o sabor de diversidade e da aposta na inovação formal, dois pilares do evento que sempre marcaram sua diferença em relação à disputa pelas estatuetas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood.

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Cannes esboçou uma edição número zero em 1939, quando o Oscar já era um rapazinho de dez anos, com a proposta de ampliar a paleta de cores e identidades nacionais nas premiações industriais do cinema, fazendo a telona falar nas mais variadas línguas. Pela afinação técnica da produção americana, à época, a vitória na briga pela Palma de Ouro, ficou com Cecil B. DeMille (1881-1959) e seu Aliança de Aço. Mas aí veio a Segunda Guerra Mundial, com força total, e o Festival só voltou a ocorrer em 1946, repaginado, com 41 longas no programa oficial – hoje são 21 em competição – e mais dezenas de curtas. Desde então, o evento passou a mobilizar a Croisette – rua em frente à praia onde fica o Palais des Festivals, o centro nervoso de exibições – a fim de fazer dela um laboratório para novas estéticas e novas propostas de narrar. É importante destacar que este senso de “novidade” está sempre relacionado a uma posta na pluralidade de etnias em foco, com relevo para o cinema eslavo, o africano, o romeno, o latino, o iraniano – terrenos que o Oscar resume a uma categoria, a de filme estrangeiro. E este ano, quando a ausência de atores negros foi alvo de críticas e brigas, fica ainda mais acentuada a diferença com Cannes, que sempre abre o leque de raças, gêneros e nacionalidades em suas diferentes mostras.

Por essa aposta na diferença, Cannes sempre gerou centelhas de revolução na arte. Foi de lá que saíram filmes que renovaram a ficção ao longo das últimas sete décadas com abordagens revolucionárias para a linguagem audiovisual: revolucionárias como Os Incompreendidos (1959), Blow-Up (1967), Apocalypse Now (1979), Sexo, Mentiras e Videotape (1989), Pulp Fiction (1994), Rosetta (1999), Elefante (2003), 4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias (2007), Valsa com Bashir (2008), Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas (2010), No (2012) e O Filho de Saul (2015). Alguns saíram de lá direto para os braços de Hollywood e até ganharam Oscars. Outros só tiveram vida útil em circuitos alternativos. Mas todos estes (e mais alguns) fizeram barulho no imaginário cinéfilo e modificaram a maneira de se filmar, de se roteirizar ou de se atuar, impondo assim novos padrões, seja de mercado, seja de reflexão, fazendo com que até a Academia, lá em Los Angeles, precisasse olhar atenta para a Croisette para poder decidir que filmes oscarizar.

Por uma certa imposição de padrões sofisticados de dramaturgia, Cannes acabou, muitas vezes, criando ilhas estéticas que não chegaram a se comunicar com o mundo como deveriam: ano passado, por exemplo, o ganhador, Deephan – O Refúgio, só teve uma visibilidade expressiva na França. E muitas vezes, o padrão de exigência dos júris ignoraram joias de perfil mais popular: em 2007, por exemplo, Onde os Fracos Não Têm Vez, que rendeu os Oscars de melhor filme e direção aos irmãos Coen, saiu da Croisette sem nada. Mas conforme foi percebendo o cinema se enfraquecer diante da concorrência com as séries americanas (e com o formato Netflix e Amazon TV) e com as produções de super-herói em formato de saga, hoje hegemônicas, seja Marvel ou DCCannes começou a abrir brechas para ampliar seu instinto pop. Há três anos, pôs um longa da HBO para concorrer: Behind the Candelabra, de Steven Soderbergh. No ano passado, trouxe um filme de vampiros mafiosos (Apocalypse Yakuza) para uma de suas seções mais prestigiadas, a Quinzena dos Realizadores. E este ano, o mergulho no lado mais varejão do planisfério cinematográfico será ainda maior, a começar pelo convite ao australiano George Miller, diretor da franquia Mad Max, para presidir o júri. Não esqueça que ele esteve lá em 2015 com seu Estrada da Fúria.

Para demarcar sua “abertura”, Cannes vai ceder lugar de honra para “o” Midas das bilheterias, Steven Spielberg, que vai estar lá com seu O Bom Gigante Amigo (The BFG), apoiado pela Disney. A presença de um par de darlings das multidões como George Clooney e Julia Roberts, protagonistas de O Jogo do Dinheiro, só vaticinam esse desenho mais popular que se faz presente também na briga pela Palma de Ouro. Embora tenha caído em desgraça em seu namoro com a indústria hollywoodiana após Showgirls (1995), o holandês Paul Verhoeven tem uma ficha corrida exemplar entre os blockbusters, com sucessos como RoboCop – O Policial do Futuro (1987) e Instinto Selvagem (1992) no currículo. Sua entrada na competição como o suspense Elle é mais do que o reconhecimento de uma autoria na direção: é um afago nas engrenagens mercadológicas que enxergam no filão thriller um veio seguro para atrair plateias.

O mesmo pensamento pode ser aplicado para The Neon Demon, de Nicolas Winding Refn, da Dinamarca. Fora os milhares de fãs colecionados pelo cineasta com Drive (2011), há uma massa de aficionados por terror que encontram naquela narrativa de luzes e sombras artificiais um lugar para chamar de seu. E a presença de Keanu Reeves no elenco pode assegurar uma amplitude de público. Há uma chance de aplicação da mesma hipótese também para o brasileiro Aquarius, de Kleber Mendonça Filho: há nele um lampejo de ficção científica, que pode mobilizar os pagantes europeus e causar frissom entre os espectadores do Brasil, onde o longa anterior do cineasta, O Som ao Redor, inspirado por John Carpenter (diretor de Fuga de Nova York), virou um fenômeno indie.

Sean Penn dirigindo (a talvez ex-)namorada Charlize Theron e Javier Bardem em The Last Face também pode suscitar filas nas salas de exibição, sobretudo nos EUA. Papa da independência nos hemisférios mais alternativos do cinema, com longas como Ghost Dog (1999), Jim Jarmusch nunca foi um peso-pesado na receitas de projeção, mas volta com a comédia romântica Paterson agora calçado pelo galã da hora: Adam Driver, o neto de Darth Vader na nova franquia Star Wars. Na Europa, três concorrentes têm um pretérito perfeito na arrecadação com a venda de ingressos: o espanhol Pedro Almodóvar (no páreo com Julieta), o francês Oliver Assayas (em concurso com Personal Shopper, cuja estrela é a musa de A Saga Crepúsculo, a Bella Kristen Stewart) e os irmãos belgas Jean-Pierre e Luc Dardenne (na briga com La Fille Inconnue). E já há também um fã-clube volumoso em volta da filmografia do canadense de Quebec Xavier Dolan, em marcha rumo à Palma com Juste la Fin Du Monde, com a diva da hora: Marion Cotillard.

Mesmo os realizadores do Oriente convocados para concorrer têm uma chancela das grandes redes de multiplex do planeta. Park Chan-wook, da Coreia do Sul, arrebatou hordas de entusiastas com seu OldBoy (2004) e pode renovar seus votos de fidelidade com olhar ocidental com seu novo projeto: o thriller erótico The Handmaiden. O mesmo pode se dizer do iraniano Asghar Farhadi, que depois de sair oscarizado com A Separação (2011), volta aos holofotes com The Salesman, fazendo uma homenagem ao dramaturgo Arthur Miller e seu A Morte de um Caixeiro Viajante, pilar do teatro moderno nos EUA – e todo o Ocidente.   

Mesmo em seleções paralelas à peleja pela Palma, como a Un Certain Regard, há filmes que passam pela Croisette para construir uma ponte com o Oscar. É o caso de Captain Fantastic, de Matt Ross, que, a julgar pelas resenhas de Sundance, pode render uma estatueta ao genial ator Viggo Mortensen. Outro concorrente da UCR capaz de conquistar votantes da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood é o desenho animado The Red Turtle, do holandês Michael Dudok de Wit, oscarizado pelo curta-metragem Father and Daughter em 2001.

Na Semana da Crítica se percebe uma marcha contrária, com filmes sem muito apelo (nem autores prontos). Mas, a já citada Quinzena dos Realizadores, por outro lado, deu a si mesma o direito de ter Nicolas Cage e Willem Dafoe bancando bandidos em Dog Eat Dog, de Paul Scharder, um mestre da direção, reconhecido na Croisette pelo roteiro de Taxi Driver, Palma de 1976. De lá também muito se espera de Neruda, do chileno Pablo Larraín, que botou Hollywood no bolso com No (2012), tendo o queridinho mexicano Gael García Bernal a seu lado.

Na seção Midnight Screenings, com longas-metragens mais próximos do horror ou do underground entraram o documentário Gimme Danger, no qual Jim Jarmusch (já anunciado em competição com Paterson) fala sobre Iggy Pop, o thriller coreano The Train To Busan, de Yeon Sang-Ho, e o drama de ação Herança de Sangue, com Mel Gibson tentando retomar o passado de glórias perdido à força de muitos escândalos. Até no setor das homenagens, Cannes vai prestigiar alguém conhecido pelo povão: o ator Robert De Niro, que receberá um tributo pelo conjunto de sua carreira com a projeção de Hands of Stone, um drama de boxe com fortes chances de levá-lo ao Oscar uma vez mais.

Com estas peças dispostas no tabuleiro midiático, Cannes se prepara para o desafio de arrebatar para si as novas gerações. É ver para crer. 

A lista de longas concorrentes à Palma de Ouro:

  • The Last Facede Sean Penn;
  • The Salesman, de Asghar Farhadi;
  • Aquarius, de Kléber Mendonça Filho;
  • Elle, de Paul Verhoeven;
  • La Fille Inconnue, de Jean-Pierre e Luc Dardenne;
  • Ma Loute, de Bruno Dumont;
  • Julieta, de Pedro Almodóvar;
  • Ma’Rosade Brillante Mendoza;
  • The Handmaiden, de Park Chan-Wook;
  • Loving, de Jeff Nichols;
  • Paterson, de Jim Jarmusch;
  • Juste la Fin Du Monde, de Xavier Dolan;
  • The Neon Demon, de Nicolas Winding Refn;
  • Sierra Nevada, de Cristi Piu;
  • Toni Erdmann, de Maren Ade;
  • Mal de Pierres, de Nicole Garcia;
  • Bacalaureat, de Cristian Mungiu;
  • American Honey, de Andrea Arnold;
  • Personal Shopper, de Olivier Assayas;
  • Rester Vertical, de Alain Giraudie;
  • I, Daniel Blake, de Ken Loach.

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