Blonde

Créditos da imagem: Netflix/Divulgação

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Será que Marilyn Monroe aprovaria Blonde?

Filme de Andrew Dominik passa pela vida de Marilyn Monroe como se ela fosse um pesadelo... e um pesadelo pautado em misoginia

Omelete
5 min de leitura
28.09.2022, às 15H00.

A primeira coisa que as pessoas descobrem sobre Marilyn Monroe quando vão atrás da história “daquela mulher da foto em preto e branco com o vestido esvoaçante”, é que ela era uma mulher desejada, sexualizada, que também vinha a ser uma grande estrela de cinema. Loira e burra, quando a pesquisa é um pouco mais tendenciosa. Loira, burra e geniosa, quando os resultados que o Google apresenta são mais profundos. Marilyn é descrita em várias biografias, também, como uma mulher suja, que não tomava banho, tinha mau hálito e que era totalmente frígida.

Em torno dela o que sempre pairava era o peso da palavra “fantasia”. Ela tinha plena consciência de que ela era uma marca, uma ideia, um fetiche... e que – tal qual acontece até os dias de hoje – o mundo não estava preparado para vê-la desnuda dessa “responsabilidade”. Imaginar Marilyn acordando, passando mal, indo ao banheiro, se enfurecendo... Aquela imagem de mulher sensual, com voz aveludada e sempre visualmente impecável, não podia ser desmontada, não podia ser desmascarada. Assim, ela viveu seus anos de sucesso digerindo inseguranças.

O mais curioso é que – por causa da pobreza de registros próprios – precisamos ceder à proximidade das pessoas com quem ela conviveu e olhar para tudo através da ótica de terceiros. O problema é que ela não tinha parentes, nem amigos fora da indústria e estava cercada de funcionários parasitas. Foram essas pessoas (e também jornalistas) que descreveram sua vida, que eternizaram esses estigmas que agora as novas gerações acessam quando buscam por ela na vastidão da internet. Marilyn é um produto do voyeurismo e a gente sabe como isso funciona... a gente vê o que a gente quer.

Quase sempre o que se “quer ver” é fantasia, é a construção mitológica, é a confirmação das conspirações. Através dos anos, as abordagens dedicadas à Marilyn se preocuparam muito pouco com o que havia além desses tópicos. Algumas vezes os retratos eram mais gentis (como no ótimo Sete Dias com Marilyn), outras vezes até mesmo documentários tinham o poder de confirmar Miss Monroe por todas as vertentes que mais a “demonizavam” (como no oportunista documentário O Mistério de Marilyn Monroe, da própria Netflix).

Desajustada

Blonde é um filme que definitivamente não está preocupado com a pessoa Marilyn e sim com a “ideia” Marilyn. O que ele quer, acima de qualquer coisa, é fazer um suposto mergulho na psique da estrela, misturando passagens reais com construções fictícias, se aproveitando da evidente noção de complexidade para que todo devaneio imagético seja permitido. Como o próprio diretor disse, ele está interessado em imagens e não em fatos. E ele deixa isso muito evidente.

Conhecida por ser difícil no set, Marilyn tinha na figura de Paula Strasberg (sua coach de atuação e autora de vários indicativos de comportamento peculiares) o ponto de segurança em seu trabalho. Uma coisa que todos os livros sobre a estrela têm em comum é a maneira como ela muitas vezes se recusava a trabalhar por insegurança ou como forma de demonstrar seu controle e seu poder sobre o universo masculino que dominava Hollywood na época. Em Sete Dias Com Marilyn, Michelle Williams construiu essa insegurança e esse “atrevimento” com ajuda de um roteiro preocupado com a dignidade de sua musa. É chocante ver como Andrew Dominic passa por detalhes como esse com a sutileza de uma bigorna: em Blonde, Marilyn trabalha aos berros, histérica, descompensada... louca.

De fato, a atriz é tratada pelo roteiro do diretor com violência. Ele é implacável. O corpo de Marilyn é exposto grosseiramente, ela surge sendo violentada, permissiva, humilhada numa cena grotesca com o Presidente Kennedy... seus abandonos são sublinhados com crueldade, seus abortos vazam como punições e o diretor chega ao extremo de criar um diálogo entre a atriz e o feto de sua segunda gravidez. O feto lhe diz: “Espero que você não faça como da primeira vez... espero que você não faça o que faz sempre”. É abismal, vexaminoso, ridículo.

Ana de Armas se dedica verdadeiramente à personagem, mas está ali para ser a Marilyn da canção criada – e já banida – por Lady Gaga: Faça o que quiser com meu corpo. A personagem é submissa ao escrutínio do julgamento em praça pública, da condenação do comportamento lascivo, ela cambaleia de um trauma para outro, de uma mutilação identitária para outra, em belos ângulos de fotografia, mas vazia de qualquer mergulho real. Andrew Dominik está interessado única e exclusivamente na subjugação dela. Marilyn está ali para ser mastigada e cuspida.

E se o próprio filme já não fosse a grande prova de que ele é um retrato abominável de uma mulher que era muito mais que corpo e fama, em uma entrevista com a jornalista Christina Newland, Dominik fez a seguinte declaração: Se você olhar para Marilyn Monroe, ela tem tudo o que a sociedade nos diz que é desejável. Ela é famosa, ela é linda, ela é rica... ela tem tudo... e ela se matou. Agora, para mim, isso é o mais importante, não é o resto. Não são os momentos de força. OK, ela arrancou o controle dos homens no estúdio, porque, você sabe, as mulheres são tão poderosas quanto os homens. Mas isso é realmente olhar através de uma lente que não é tão interessante para mim”.

Nada pode ser mais emblemático que um homem achando que o melhor ângulo da vida de um ícone feminino é aquele que mostra o sexo e a dependência como pautas principais de uma vida. Blonde é um filme criminoso, que confirma as injustiças e violências sofridas por Marilyn sendo mais uma delas. Não, ela não aprovaria esse horror. Isso seria como entrar novamente dentro do escritório de um produtor poderoso e servir a seus propósitos misóginos. Ela não merecia isso. Ela era muito mais que isso. 

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