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Crítica

Expresso do Amanhã | Crítica

Bong Joon-ho fala de revolução, mentalidade de turba, do homem e da máquina, no seu primeiro filme "para o mundo"

28.08.2015, às 12H36.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H37

Há um momento na metade de Expresso do Amanhã (Snowpiercer) que representa bem o que o diretor sul-coreano Bong Joon-ho (Mother) quer dizer sobre revoltas e revoluções neste seu primeiro filme ocidental, que adapta a HQ francesa O Perfuraneve e que leva a clássica pirâmide de classes do capitalismo para dentro de uma locomotiva pós-apocalíptica, uma arca em uma terra devastada por uma nova era do gelo.

Na cena, os rebeldes liderados por Chris Evans, saídos da insalubre traseira do trem, em direção ao primeiro carro, chegam ao vagão escolar. Lá, o ruivo e a negra, que tiveram seus filhos tomados de si no começo do filme, não conseguem identificar as crianças nesse vagão. O fato de Bong colocá-las lado a lado, sentadas nas carteiras escolares, obviamente sugere que os pais não estão identificando seus filhos, de cabelo cortado e banho tomado. Que o filme mais tarde aplique uma reviravolta nessa situação é outra questão; naquele primeiro momento, fica claro que os rebeldes não conseguem enxergar além de sua própria classe.

Pois esse é um componente muito atual da polarização que cada vez mais a questão de classes tem tomado no Brasil e no mundo, a incapacidade de se colocar na posição do outro. Expresso do Amanhã trata a revolução das massas não como aquele ideal romântico do Povo no Poder, mas como um ato que implica desespero, rancor e (como sabemos bem pela tendência do brasileiro ao linchamento) pensamento de turba. Que a resolução de Expresso do Amanhã seja uma virada do nível Neo versus Arquiteto de despertar para a realidade, só prova como a mob mentality pode impedir de ver o contexto maior.

Em seus melhores filmes, Bong trata algumas cenas de violência e desespero não como um balé organizado, mas como um pequeno caos que às vezes parece ter fim humorístico (o interrogatório em Memórias de um Assassino, a família chorando junta em O Hospedeiro). No caso de Expresso do Amanhã - um filme de exportação de Bong que, como tal, tem a pretensão de ser mais sério como cinema de ação do que seus trabalho anteriores - isso fica um pouco diluído, mas não muito: as primeiras brigas de Evans e Cia. contra os guardas, desordenadas, têm ainda um pouco do espírito agridoce, satírico, do cineasta. A música mínima de Marco Beltrami, sem espaço para grandiloquência, impede de transformar esses momentos catárticos em puro revanchismo.

De qualquer forma, há sátira de sobra na composição caricata e na encenação de personagens como a porta-voz/governanta (Tilda Swinton, verdadeiro motor dramático do Perfuraneves). É por ela, ou especificamente pela forma primária que ela passa a lição do chapéu e do sapato aos iletrados, que Expresso do Amanhã começa a tomar a forma mais de uma fábula politica acessível do que necessariamente de uma ficção científica distópica cheia de gravidade. No mais, é essa tendência à fábula que torna os filmes de Bong tão especiais.

Outro traço marcante do cineasta, o fato de Bong sempre filmar seus protagonistas de frente, em close-ups à altura dos olhos, e em enquadramentos que frequentemente eliminam elementos de fundo e isolam esses personagens - o mais próximo possível de um cinema feito de retratos 3x4 -, aqui é usado para ressaltar esse maniqueísmo declarado, nós contra eles, a massa contra o sistema. Que no momento da sua decisão final, seu despertar, Chris Evans seja submetido a um instante inclemente de isolamento (o homem dentro da máquina, literalmente), mostra como Bong, mesmo depois de toda a sátira, depois de mostrar como o poder corrompe, está disposto a dar a seus heróis a merecida redenção.

Nota do Crítico
Ótimo

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