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É sempre bom ver um filme que nega regras, que evita facilitar a vida espectador. Mas às vezes é difícil saber o que separa o provocador, o interessante, do hermético, incompreensível.
A audição é o primeiro desafio de O Veneno da madrugada (2006), filme de Ruy Guerra baseado no romance La mala hora, de Gabriel García Márquez. O título sugere uma história por becos urbanos escuros, mas na verdade se passa em um vilarejo enlameado, molhado, minúsculo - e cacofônico. O barulho da chuva se mistura ao dos bichos, este ao das pessoas que grunhem mais do que se comunicam.
O alcaide sem nome (Leonardo Medeiros, de Cabra-Cega) fala mal porque lhe doem os dentes que ele se recusa a arrancar. Cabelo grudado na testa, oficial de justiça em uma terra mandada pelo coronelismo, ele anda de um lado ao outro ininterruptamente atrás de algo. Aos poucos, descobrimos que pretende embaralhar as terras dos dois grandes proprietários do lugar: a viúva Assis (Juliana Carneiro da Cunha, de Lavoura Arcaica) e Dom Sabas (Amir Haddad).
Acontece que o alcaide, símbolo embriagado de um fiapo de lei, não tem descanso. Alguém está espalhando bilhetes que revelam intimidades dos outros moradores. O padre Angel (Fábio Sabag) suplica que a leviandade cesse, o corno Roberto (Emílio de Melo), filho da víúva, implora que os bilhetes parem antes que sua honra já combalida seja manchada de vez. Tudo isso ocorre nas 24 horas que separam a manhã de um sábado e o dia seguinte - domingo de apocalipse, de hecatombe, em que só permanecem no mesmo lugar que começaram as ratazanas gordas que infestam a igreja.
Se parece vertiginoso, ou no mínimo diferente, parte do débito vai na conta de Guerra, outra na de García Márquez. O mestre do realismo mágico oferece, de seu livro, a narrativa desconstruída que permite ao cineasta ir e voltar no tempo e repassar cenas sob perspectivas diferentes. Guerra, amigo pessoal do escritor, conhece seu universo como poucos - ele já havia dirigido adaptações de outros dois livros do colombiano, Erêndira (1983) e A fábula da Bela Palomera (1987). O veterano Guerra, que não tinha um filme lançado comercialmente desde Estorvo (2000), adaptação do romance homônimo de Chico Buarque, tem mesmo predileção pelas obras literárias cheias de fluxos de consciência, teoricamente inadaptáveis em termos visuais. Talvez por isso ele se sinta tão à vontade para tomar licenças criativas.
Muitas funcionam. A fotografia primorosa de Walter Carvalho traduz desde o primeiro instante a claustrofobia tão cara a Guerra. Quando surgem as cenas iluminadas, é bom atentar - talvez aí esteja a senha para reparar em um ou outro personagem banhado de luz, a quem é dado a curta chance de um pouco de ar. Mas aí já começa o desafio de compreender (explicar talvez seja pedir um pouco demais) o que O Veneno da madrugada quer nos dizer.
Libelo antireacionarismo? Reflexão sobre um povo condenado? É possível, já que a paisagem tem toda a cara de América do Sul, o filme faz menção a guerrilhas e Dom Sabas parece a mistura de ACM com Jabba the Hutt. Manifesto pessimista sobre uma herança maldita? C.Q.D. não-linear de um destino escrito em bola de cristal? Pode ser também. Cabe ao espectador decidir se O Veneno da madrugada fica do lado dos provocadores ou dos herméticos, se faz algum sentido ou se faz sentido nenhum. Vale dizer só que o filme não aceita meio termo.
Ano: 2005
País: Brasil
Classificação: 14 anos
Duração: 118 min
Direção: Ruy Guerra
Roteiro: Gabriel García Márquez
Elenco: Leonardo Medeiros, Juliana Carneiro da Cunha, Rejane Arruda