Filmes

Entrevista

Festival de Berlim | "Quero tirar os africanos da invisibilidade", diz diretor premiado com o Urso de Ouro

Gianfranco Rosi fala ao Omelete sobre o seu documentário Fuocoammare

20.02.2016, às 20H28.
Atualizada em 29.06.2018, ÀS 02H37

Ter um Leão de Ouro no currículo, conquistado há três anos, no Festival de Veneza, por Sacro GRA, não assegurou ao documentarista Gianfranco Rosi visibilidade popular, nem mesmo um bom espaço em circuito - situação que pode mudar a partir deste sábado, após a conquista do Urso de Ouro no Festival de Berlim por seu novo longa-metragem, Fuocoammare.

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No encerramento do evento, o cineasta, nascido há 51 anos na Eritreia, na África, sob nacionalidade italiana, saiu ainda com os prêmios do Júri Ecumênico, da Anistia Internacional e dos leitores do jornal alemão Berliner Morgenpost. Mais do que isso, passou a ser assediado pela mídia como nenhuma outra celebridade, não só pela vitória, mas por ter se tornado, na capital alemão, o porta-voz do assunto mais quente da Europa na atualidade, a acomodação dos refugiados da África e do Oriente Médio no Velho Mundo.

Confira a lista de premiados no Festival de Berlim 2016

Depois do troféu dourado dado pelo júri presidido por Meryl Streep, Rosi falou ao Omelete.

Seu documentário é um retrato sobre o cotidiano de Lampedusa, ilha no sul da Itália com cerca de 6 mil habitantes dedicados, em sua maioria, à agricultura e à pesca, sob as bênçãos das águas do Mediterrâneo, e que testemunham regularmente a chegada de barcos com refugiados da África. Como dar voz e visibilidade aos moradores de Lampedusa, e registrar os gestos mais simples de seu cotidiano, para além da tragédia com os imigrantes?

GIANFRANCO ROSI: Essa voz aparece porque eu nunca encarei este documentário como sendo um filme político, mas sim como um filme dos afetos. Não por acaso, hoje, horas antes da premiação, falaram comigo que Fuocoammare era um filme de amor. Talvez seja. Eu tinha uma tragédia na minha frente, eu tinha a morte diante de mim, e só poderia reagir a ela com as ferramentas mais importante que o documentário me dá: a imersão e a escolha. Documentar é se aproximar sem decidir de véspera, é estar desarmado, mas pronto para entender e sentir o que vem. Eu não tinha personagens diante de mim. Eu tinha pessoas.

Uma pessoa em especial se destaca, que é Samuele, um menino de 12 anos que serve como uma bússola para nortear suas andanças por aquela ilha. Como ele reagiu à conquista do Urso de Ouro e que tipo de método de filmagem o senhor estabeleceu com ele?

ROSI: Liguei para ele mais cedo neste sábado para falar que estaríamos na cerimônia de entrega dos prêmios e ele brincou assim: "Se a gente ficar em terceiro lugar já está bom". Eu precisava proteger Samuele, sem trazê-lo aqui para que ele não tivesse a impressão de ser um ator. Ele é uma pessoa, um menino. E não esteve comigo e com a equipe durante a filmagem toda. No período de um ano em que ficamos filmando lá em Lampedua, ele esteve comigo uns 30 dias e de maneira esparsa, descontínua, pois eu precisei estabelecer uma espécie de jogo com ele. Eu não podia saber previamente que reações ele teria. Não podia ir filmar já sabendo como estava seu humor. Tinha que nascer uma relação na hora, sem intervenções. Era a vida dele que me interessava e não uma atuação.

Fora a afinação com a polêmica dos refugiados, seu filme se destacou aqui pelo olhar poético. Como o senhor desenvolveu sua estética de observação?

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ROSI: A Itália tem uma tradição muito forte de documentaristas e também de diretores que misturaram a realidade com a ficção criando, entre outras coisas, o movimento chamado de Neorrealismo, que revolucionou o cinema nos anos 1940. Não é desta linhagem que eu venho, embora eu a respeite. Referências deste ou daquele cineasta são úteis só até o momento em que você liga a câmera pela primeira vez: dali pra diante só tem você. E esse "eu lírico", que eu sou com a câmera, é alguém que tenta entender o que existe de verdadeiro e de falso por trás de cada gesto e de cada palavra que registro. O que me deixa compreender isso: o ambiente à minha volta. Meus "protagonistas" são os lugares em que filmo. Em Fuocoammare, cada ação é determinada pela maneira como aquele local, com sua paisagem influencia na vida de seus habitantes. Inclua entre essas influências a tragédia externa.

E o que o seu filme tem feito para alardear essa condição trágica dos refugiados?

ROSI – Até a sessão em que exibimos Fuocoammare aqui em Berlim, no dia 13, o debate sobre a importância de Lampedusa para os fluxos migratórios era limitado à Itália. Agora, vocês do Brasil falam sobre a ilha e sua situação, assim como jornalistas de outros países falam dela. Não sei se o saldo do meu filme influi diretamente a vida dos refugiados, mas humaniza o problema deles, transformando estatísticas em pessoas: no fundo, meu esforço maior é tirar esses africanos da invisibilidade. Sinto que o saldo maior deste filme é sobre a própria instância do documentário como uma forma de representação do mundo. Ao levá-lo para a competição de um festival como Berlim, tirando-o de guetos, o documentário ganha um alcance maior e revela sua diversidade narrativa.

Qual é o dispositivo narrativo que injeta poesia em um filme de denúncia como Fuocoammare?

ROSI: Sutileza é um deles. A câmera tem que ver sem ser vista. A câmera tem que fluir sem arroubos de estilo. Mas, acima de tudo, um documentário necessita de uma relação de confiança entre o realizador e o documentado. Sem confiar, uma figura como Samuele não se revela nem se desvela diante da câmera. E a câmera documental existe para desvelar o que se olha, mas não se vê na inteireza.

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