Filmes

Entrevista

Mãe Só Há Uma | "Escolhi a história do Caso Pedrinho para falar de identidade", diz Anna Muylaert

Brasileira fala sobre longa premiado em Berlim que estreia no Brasil esta semana

19.07.2016, às 12H35.
Atualizada em 03.11.2016, ÀS 15H59

Ímã de aplausos e de elogios em sua passagem pelo Festival de Berlim, de onde saiu com o prêmio da imprensa LGBTS, Mãe Só Há Uma, o novo longa-metragem da mais aclamada diretora brasileira da atualidade, a paulista Anna Muylaert, chega ao circuito nesta quinta-feira (21), abrindo uma discussão sobre identidade e autenticidade. Antes, nesta quarta, a cineasta, premiada mundialmente por Que Horas Ela Volta? (2015), exibe a produção na abertura do Festival de Cinema Latino-Americano de São Paulo, no Memorial da América Latina, às 20h. A trama do filme tem como protagonista o adolescente Pierre (Naomi Nero), um estudante que curte sua sexualidade sem rótulos, entre meninas e meninos, com um visual andrógino. Um dia, ele descobre que sua mãe, Aracy (Dani Nefusi), sequestrou-o quando ele ainda era bebê. A notícia é seguida por outro choque: seus pais biológicos, Matheus e Glória (vividos por Matheus Nachtergaele e pela própria Nefusi), querem levá-lo para casa e dar a ele todo o carinho que ficou engavetado. De cara, querem chamá-lo do nome com o qual ele seria batizado: Felipe. A mudança vira a vida do rapaz do avesso, gerando situações trágicas e cômicas. Na entrevista a seguir, Anna comenta seu estilo de filmar e fala sobre a representação da juventude em seu cinema.

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Omelete: De que maneira Mãe Só Há Uma transcende questões de gênero para afirmar questões de identidade em diferentes pontos de vista e diferentes modos de estar? Qual é o coração deste seu novo filme? 

Anna Muylaert: Escolhi a historia do Caso Pedrinho (sobre o jovem Pedro Rosalino Braule Pinto, raptado na maternidade em 1986 e criado por uma outra família até sua adolescência) justamente para falar de identidade. Se de uma hora para outra todo o seu conceito social e familiar muda, como você continua sendo você? Mais tarde acrescentei mais uma discussão, sobre identidade de gênero, por sentir que é um assunto muitíssimo importante na geração atual.  Afirmação da identidade, seja ela qual for, é o coração do meu filme.

Omelete: Vemos em Mãe Só Há Uma o uso de uma abordagem estética mais radical e arriscada do que a do seu filme anterior, Que Horas Ela Volta?, sobretudo em termos de enquadramento, com o uso de câmera na mão. Como você define a concepção plástica desse filme, a partir dessa liberdade formal, de imagens mais frenéticas?

Muylaert: Este projeto nasceu da minha necessidade de fazer um filme com orçamento menor, para ter mais liberdade tanto na forma, quanto na escolha do elenco.  Acho que o Mãe Só Há Uma é meu primeiro filme que arrisca a fazer um cinema mais sensual, menos narrativo e consequentemente mais ousado.  Eu não saberia defini-lo ainda, mas acho que é um filme mais arriscado, cheio de lacunas narrativas que estão ali em função das lacunas que o protagonista vive.

Omelete: Você confia os dois principais papéis femininos do filme – ambos de mãe – à mesma atriz: Dani Nefussi. O que busca com esse espelhamento?

Muylaert: Acho que o título do filme é uma anedota freudiana e usar a mesma atriz vai no mesmo sentido.  Embora o personagem troque de mãe, é a mesma mãe que ele encontra do outro lado.  Além de querer criar uma estranheza a nível fílmico, acho que eu também queria falar da grande mãe que está por trás tanto da mãe criminosa, quanto da mãe vítima, porque acho que simbolicamente toda a mãe comete seus acertos e também os seus erros. E, mesmo assim, ela continua sendo a pessoa que te formou.

Omelete: Lá se vão 14 anos desde seu primeiro longa-metragem, Durval Discos, melhor filme do Festival de Gramado de 2002. Como você avalia o seu método de direção após 14 anos de mãos dadas com o formato, tendo trabalhado em histórias muito pessoais, sobre intimidades, sobre desejos?

Muylaert: A experiência me deixou mais relaxada para tomar as decisões que um filme requer o tempo todo, seja no roteiro, na formação do elenco, na escolha do lugar onde vai a câmera, na montagem... São milhares de decisões que parecem pequenas, mas que poderão influir muito no resultado final. Por isso, elas geram enorme tensão. Não que eu tenha ficado relaxada, porque isso é impossível no cinema, mas estou um pouco mais relaxada e, consequentemente, mais consciente. Pelo menos, acho que sim. Hoje, eu me sinto mais segura para lidar com os diferentes tipos de atores, desde o estreante até os mais experientes.  E, principalmente, o uso do digital me permitiu entrar cada vez mais numa zona de desconforto, ou seja, eu passei a poder filmar as cenas com menos ensaio. Posso filmar uma cena mais vezes, de diversas formas. E aprendi a absorver erros e dar uso positivo a eles, a absorver fatos inesperados, como, por exemplo, a chuva no meio de uma cena. Enfim, consegui entrar numa zona de mais risco e improviso buscando um resultado mais vivo, mais humano. Agora, aviso aos atores para que, seja lá o que acontecer, ele reagir à minhas provocações de forma autentica e seguir em frente.

Omelete: E novas parcerias se consolidaram nesse trajeto?

Muylaert: Sim. Acho que, ao longo desses anos, eu encontrei cada vez mais colaboradores que dialogam com esse modo mais solto de dirigir. E eles me dão muita segurança, como, por exemplo, a produtora de elenco, Patricia Faria, a diretora de fotografia Barbara Alvarez e o diretor de arte Thales Junqueira. Eles fizeram os meus dois últimos filmes e espero que façam os próximos.

Omelete: Como é que você avalia todo o percurso internacional e toda a trajetória de debates em solo nacional realizado por Que Horas Ela Volta? em 2015? O quanto esse filme modificou sua imagem como realizadora?  

Muylaert: Que Horas Ela Volta? foi um sucesso mundial. Foi lançado em 30 países em todos os continentes e, em todos os lugares por onde foi, ele emocionou e gerou o mesmo debate sobre separatismo social.  No processo de lançamento internacional, eu viajei muito e conheci muita gente nova entre público, distribuidores e jornalistas em toda a Europa. Consequentemente, eu aprendi muito sobre outros modos de fazer e distribuir cinema. Mas, claro, no Brasil, o filme foi um fenômeno que ultrapassou as discussões sobre cinema. Ele acabou se tornando um objeto de debate sobre várias questões sociais desde separatismo de classes até o feminismo – um tema que eu nem tinha consciência que estava no filme.  Com o forte boca a boca e o advento da pirataria, o filme penetrou nos quatro cantos do Brasil. Além de ter gerado debate e de ter trazido personagens que se transformaram em arquétipos comportamentais da nossa cultura, acho que o principal feito do filme, no final, foi ter dado nome a toda uma geração – a geração das Jessicas, ou seja, meninos e meninas que são a primeira geração de famílias de baixa renda a entrar no ensino superior.  Ao se ver retratada no cinema, essa geração também se viu e se fortaleceu.

Omelete: E o quanto esse filme modificou sua imagem como realizadora, agora que até a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood te incluiu como membro votante do Oscar?  

MuylaertModificou muitíssimo porque este foi meu primeiro filme popular. As pessoas passaram a conhecer não apenas o filme, mas também se deram conta de que essa mesma diretora estava nas equipes de criação de programas que muitos assistiram na infância, como Castelo Rá-Tim-Bum ou Mundo da Lua.  Isso fez com que muita gente tenha entrado em contato comigo e recebi uma verdadeira chuva de amor.

Confira também nosso papo com a diretora no Omelete 360º:

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