Apesar de ser uma série ficcional, Sentença é populada por personagens que “podemos encontrar na rua ou no ônibus a qualquer momento”, como define a atriz Lena Roque ao Omelete. A produção do Amazon Prime Video trafega por tipos tão comuns do sistema judiciário brasileiro (e dos filmes e séries do gênero) que são quase arquétipos: de Heloísa (Camila Morgado), a advogada de defesa sobrecarregada, mas motivada por forte senso de justiça; a Dinorah (Roque), a trabalhadora da periferia acusada de matar um policial no meio de uma ação violenta na comunidade em que mora.
Para encarar esses e outros papéis, o elenco mergulhou em pesquisa sobre os sistemas criminais brasileiros - e as falhas flagrantes deles, é claro. “Conforme ia me preparando para essa série, começava a me preocupar muito mais com essa questão”, confessa Camila ao Omelete. “Esse é um sistema em que a gente vive diariamente, e ele trabalha muito mais a punição do que a recuperação. Não temos uma justiça restaurativa. De 10 presos no Brasil, 7 são negros. As prisões estão em degradação, são quase uma tortura”.
Fernando Alves Pinto, que interpreta o promotor Pedro (marido de Heloísa) na série, define as cadeias brasileiras como “pós-graduação do crime”: “O cara é preso, sei lá, por pescar no lugar errado, e sai de lá um bandido”. E quem sente isso na pele durante a série é Dinorah, que aguarda julgamento em uma penitenciária feminina e precisa encarar uma realidade violenta lá dentro - cenas para as quais, como apontou Lena Roque, é impossível se preparar adequadamente.
“Por mais que a gente se prepare, teoricamente, chegando lá no ‘vamo ver’ parece que não nos preparamos para nada. Tem um elemento surpresa no set de filmagens que é fundamental, e isso aconteceu muito em Sentença para mim”, comenta. “É óbvio que eu tive muita ajuda durante as gravações, enquanto a Dinorah faz o percurso dela solitária. [...] E essa solidão dela é uma solidão que a maioria das mulheres negras vivem, então para mim ela é arquetípica - ela é a primeira mulher, a grande mulher, não menos do que isso. Ela não é uma coitadinha, injustiçada, porque eu não gostaria que me vissem assim. Quero dar a ela a grandeza e dignidade que ela merece”.
Amor e poder
Outra narrativa recorrente que a série aborda é a do líder de facção criminosa, Zeca (Rui Ricardo Diaz), que comanda seu império de dentro da prisão… com a ajuda importante da esposa, Moira (Heloísa Jorge), também sua advogada. Os atores contaram ao Omelete que essa relação não é um chavão só da ficção criminal, mas também do mundo real.
“A verdade é que é mais comum do que a gente imagina uma advogada ou defensora pública defender o seu parceiro. Eu imaginei que tivesse algum impedimento legal, mas não”, comenta Heloísa. “São histórias reais nesse universo do crime organizado, então o que eu me preocupei foi em trazer honestidade para essa relação, mostrar que é um casal como outro qualquer”.
Sentença é ousada em mostrar Zeca e Moira como uma dupla dinâmica não só nos negócios, mas também no amor e no cuidado com a família - eles são pais de duas filhas. “Quando a gente fala do amor entre eles, as pessoas duvidam: ‘Ah, se amam, mas estão atrás de poder’. E sim, se amam e estão atrás de poder! Como é natural do ser humano no geral”, aponta Rui.
Não é a única relação afetiva emaranhada nas idas e vindas do sistema judiciário que Sentença apresenta - a protagonista Heloísa e seu marido promotor também se veem “entre a defesa e o ataque”, como define Fernando. “Nós conversamos com muitos advogados, e ficamos sabendo que o casal da série é realmente atípico. Dá a impressão que não daria muito certo, e parece que não dá mesmo”, brinca o ator.
“Na série, esse casal dá um tempero interessante, porque os dois estão envolvidos com essa parte apodrecida do nosso sistema, e isso é contagioso, mexe com a cabeça de quem trabalha ali. Ter dois personagens que vivem nesse universo… eles não podem ser pessoas normais, o que é muito mais interessante de se assistir”, completa.
Visão latina
Um detalhe de Sentença que talvez passe despercebido por quem não conhece os bastidores da produção é que, embora se passe nos fóruns, prisões, escritórios de advocacia, favelas e bairros nobres de São Paulo, ela foi totalmente filmada… em Montevidéu, no Uruguai. Foi uma solução que a equipe encontrou para trabalhar com um pouco mais de segurança durante o auge da pandemia - mas isso também apresentou um desafio às diretoras, a brasileira Marina Meliande e a argentina Anahí Berneri.
“Além de adaptar todas as locações, nos baseando em lugares reais de São Paulo, tivemos a preocupação de reproduzir todos os gestos, protocolos e procedimentos da Justiça brasileira”, aponta Marina. “Porque esse é um universo que vemos muito pouco - vemos muitas séries e filmes de tribunal americanas, mas muita gente não sabe como isso se dá no Brasil. Não são os mesmos espaços, as mesmas regras e as mesmas formas de agir”.
Anahí acrescenta que, para ela, a experiência de comparação com o sistema argentino foi curiosa: “A criadora da série, Paula Knudsen, pesquisou muito mais que todas nós sobre o sistema judiciário e penitenciário brasileiro. [...] Pessoalmente, o que eu notei foi que as falhas do sistema brasileiro são muito parecidas com as falhas que encontramos no meu país. Por isso, acho que Sentença é uma série que será bem-vinda em diferentes lugares do mundo - são temas universais”.
Como nota Camila Morgado, é impossível ver as rachaduras do sistema judiciário brasileiro e não pensar em toda a estrutura social que o criou: “Enquanto a gente vir a desigualdade social imensa que vemos no Brasil, vamos continuar tendo um sistema muito ruim. [...] Agora, como cidadã, eu passei a me perguntar: como melhorar, como sair disso? É uma pergunta que temos que fazer para toda a sociedade, sobre como trabalhar os direitos humanos sabendo que a gente vive em um sistema como esse”.
Sentença estreia no Amazon Prime Video nesta sexta-feira (15).