O cidadão americano ama heroísmo. É claro que a gênese dos super heróis não é de propriedade estadunidense, mas ali nasceu um jeito de falar do assunto que é bem peculiar. Em parte isso surgiu de um senso de dever e moralismo que foi derivando da questão militarista até um símbolo maior de proteção e servidão, que eventualmente usava capa e máscara. A cultura americana não vive sem a ideia do heroi de guerra ou de uniforme. Só isso explica a quantidade avassaladora de séries onde médicos, policiais, bombeiros e paramédicos passam todos os episódios salvando vidas e ganhando aplausos.
9-1-1, que chegou até a Fox em 2018, tinha essa mesma premissa heroica, mas com um detalhe que a colocava na trilha contemporânea de uma maneira particular. O nome de Ryan Murphy no trio de criadores era o que livrava a série do moralista “american way of life” impresso nas produções do gênero principalmente nos anos 80 e 90. Os personagens e os conflitos dos personagens da série tinham a marca de Murphy e prezavam por colocações e discussões que retratavam um outro tipo de América. Mais honesta, mais real e mais diversa.
A emissora lançou outro pedaço do universo de 9-1-1 na última semana, mas que apesar de ser chamado por alguns de derivado, funciona muito mais como expansão da franquia. 9-1-1 Lone Star não tem nenhum personagem em contato com a série original e os criadores já afirmaram que são universos muito distintos. Embora carregue a mesma marca, 9-1-1 Lone Star apenas deriva, sem carregar nenhuma responsabilidade de desenvolver ligações. E com isso, inaugura a possibilidade de uma franquia infinita: com personagens diferentes em cidades diferentes, o sistema de atendimento de emergência pode ser explorado em dezenas de versões.
Em comum, as duas séries partilham o sofrimento de seus protagonistas. Em Lone Star o Capitão Owen Strand (Rob Lowe) acabou de descobrir que tem câncer e que o filho tentou suicídio por causa de um relacionamento perdido. Para sair com ele de Nova York, o Capitão aceita reconstruir o departamento de bombeiros de Austin, no Texas, que acabou de ser aniquilado depois de um imenso acidente. A questão é que quando ele chega lá se depara com Judd Ryder (Jim Parrack), o único sobrevivente do batalhão, que não só está lidando com um transtorno pós-traumático severo como quer de volta seu lugar. As propostas de Owen esbarram inevitavelmente no tradicionalismo do texano.
Cowboy Emergency
Se na série original a atenção à diversidade do elenco e dos personagens era imensa, em Lone Star a equipe de Murphy vai muito mais além. O time de novos recrutas do batalhão inclui a muçulmana Marjan (Natacha Karam), o transexual Paul (Brian Michael Smith) e TK (Ronen Rubinstein), filho do Capitão Owen, que é assumidamente gay e tem um romance com um paramédico. Como é típico das obras de Murphy, há uma série de momentos em que esses personagens apresentam para a cena as problematizações de seus lugares de fala. Mas, antes de tudo, há um profundo investimento dos roteiros em fazer essas pessoas serem reais, críveis, o que também é um traço marcante do trabalho em ambas as produções.
Há um outro elemento importante dessa narrativa que é a da paramédica Michelle Blake (Liv Tyler), personagem que adiciona um elemento novo ao tipo de dramaturgia da série. Ela tem uma irmã que desapareceu há três anos e encontra-la é sua motivação constante. Enquanto a vida dos personagens serve de fio condutor e os casos semanais são a maior parte da ação, a realidade de uma trama que exige um desenvolvimento a longo prazo não deixa de ser o diferencial do derivado. Nos dois episódios que abriram a trajetória da série, a busca de Michelle já se evidencia como parte importante da narrativa.
A escolha do Texas como destino da franquia também foi calculada. Conservadora e tradicional, ela serve como alvo para a observação crítica constante do texto, que parece provoca-la com a reunião impressionante de minorias presentes no elenco. Até mesmo a chegada de Rob Lowe não escapa do deboche dos roteiros, quando o Capitão Owen surge muito mais obcecado com o próprio cabelo do que com a realidade do câncer. Contudo, sendo o otimista que é, Ryan Murphy não se priva de sua atração pela superação e – precisamos admitir – por esse já citado senso de heroísmo. Ainda que provoque, ainda que deboche, ainda que ouse, Lone Star não se esquece que o mais importante é celebrar aqueles que se dedicam a salvar vidas.
Mesmo se tratando de uma reprodução, Lone Star dá conta de suas responsabilidades e em seus dois episódios de estreia, faz com que todos os seus elementos funcionem perfeitamente bem. Os personagens são carismáticos, os salvamentos são interessantes e diferente da eloquência hollywoodiana da série original, ganham na abordagem de um tipo de cidade que tem problemas sociais maiores que um tsunami ou um terremoto. Espera-se que o sucesso seja outro dos pontos em comum entre as duas séries. Ambas são inteligentes, bem escritas e divertidas. E revelam uma América crítica, mas ainda orgulhosa de seus potenciais salvadores.